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Investigador do CES-UC e IHC-UNL
A Europa Connosco?
“Portugal está em boas condições para dar mais um passo na sua caminhada democrática…”
19 Nov 2021, 08:30

Após o fim da aventura imperial, em 1974, Portugal abraçou um novo desígnio: a integração no espaço europeu, de que tinha andado arredado nos tempos do “orgulhosamente só”. Em termos políticos, esta foi uma opção por um modelo de democracia liberal baseada no estado de direito e amplas liberdades cívicas.

A adesão à então CEE (hoje, União Europeia), a 1 de Janeiro de 1986, selou esse compromisso estrutural e estratégico. No entanto, o modelo político vigente comportava uma grande variedade de soluções – monarquia ou república, presidencialismo, semi-presidencialismo ou parlamentarismo, sistemas eleitorais maioritários ou proporcionais, com ou sem clausulas barreira, etc. – enfim, um leque amplo por onde se podia escolher.

Portugal abraçou o que é uma quase originalidade, uma vez que poucos nos seguem o exemplo: a existência de governos minoritários

Ainda hoje, a União Europeia (UE) a 27 oferece as mais variadas possibilidades. Num aspecto, porém, Portugal abraçou o que é uma quase originalidade, uma vez que poucos nos seguem o exemplo: a existência de governos minoritários. Em bom rigor: nenhum.

Existem, hoje, governos minoritários na Dinamarca (mas alicerçados em acordos parlamentares com vários partidos) e na Suécia (onde o partido do governo selou acordos escritos com mais dois partidos). Em todo o resto da UE, ou temos governos de maioria absoluta, de um só partido ou coligação (sendo que nenhum sucede em países com sistema eleitoral de índole proporcional, como a França ou Malta em que vigoram sistemas maioritários, ou onde o maior partido ganha um bónus que normalmente lhe permite governar, como a Grécia), ou, em 17 casos, governos formados por coligações, que podem ir de dois a sete partidos (ou mesmo coligações de coligações), sendo a “moda” o caso de coligações a três (como se está a desenhar no caso da Alemanha, que desde a II Guerra não tem, senão, governos de coligação). Como dizia há dias Pedro Adão e Silva, no Expresso, “a Europa política é diversa, mas dominada, à esquerda e à direita, por coligações, e excepcionalmente por governos de maioria absoluta ou minoritários”.

Na minha última crónica, argumentei a favor da existência de governos com suporte maioritário claramente expresso, que tanto poderiam ser de coligação formal (o que penso mais desejável) ou de mero apoio parlamentar, mas não numa base de barganha permanente, antes vertido em documentos que proporcionem um horizonte de legislatura.

No entanto, devo reconhecer que há argumentos que procuram encontrar soluções que possam obviar aos inconvenientes dos governos minoritários, nomeadamente a sua fragilidade. Jorge Reis Novais apresentou há dias algumas hipóteses, inspiradas no que sucede noutros países europeus. Nenhuma destas hipóteses – que passarei a sumariar- implica alterar o sistema de representação proporcional ou os poderes do PR; se enveredássemos por essas vias, mais hipótese se poriam. No entanto, todas elas requerem uma revisão da actual constituição.

Há argumentos que procuram encontrar soluções que possam obviar aos inconvenientes dos governos minoritários, nomeadamente a sua fragilidade

A primeira hipótese seria a de alargar à discussão de algumas leis, como o OE, o princípio que subjaz à investidura do governo: não haveria necessidade de um voto positivo, bastaria que não houvesse uma moção de censura. É o que sucede em França, onde o governo tem o poder de invocar este princípio de forma contida e que permite governar sem ter maioria. Se este poder, a ser sempre instituído com limites correspondentes à sua excepcionalidade, fosse alargado a outras leis não orçamentais, teríamos um quadro mais vasto em que nem sempre o parlamento aprovaria leis por acto de votação maioritário, mas antes, por assim dizer, por consentimento tácito (como sucede com o programa de governo).

Uma outra hipótese inspira-se no que sucede em Espanha, onde existe a chamada “moção de censura construtiva”: o grupo que apresentar uma moção de censura ao governo tem obrigatoriamente de indicar um nome alternativo para o cargo de PM e garantir-lhe apoio suficiente para que constitua governo. Foi assim que caiu o último governo de Mariano Rajoy, na primeira vez que esse mecanismo foi usado com sucesso.

Compreendo o sentido das propostas. No entanto, para mim elas apresentam-se como um exercício de engenharia política: como transformar uma minoria real numa maioria artificial. Nesse sentido, desagradam-me. Não sou inocente: há sempre uma distorção nos sistemas de representação. A nossa lei eleitoral permite que seja alcançada maioria absoluta de deputados em torno dos 44% (embora esteja dependente de vários factores), não sendo preciso 50%.

A divisão do território em círculos eleitorais introduz um viés decorrente do tamanho dos círculos e da distribuição dos votos

A divisão do território em círculos eleitorais introduz um viés decorrente do tamanho dos círculos e da distribuição dos votos. Outro exemplo: nas autárquicas de 1976, o PS teve 33% dos votos e o PSD 24% – e ambos conquistaram 115 câmaras, dado que o OE teve o voto muito mais distribuído pelo todo nacional, e o PSD concentrou-o no Norte e Centro.

Mas não creio que distorcer mais a expressão de votos do eleitorado seja um caminho saudável, afastando cada vez mais as instituições e o seu modo de funcionamento da transparência que deve ser exigível. Por outras palavras: não é pela via de se arranjarem atalhos para a maioria absoluta (ou situações equivalentes) sem que se obtenha igual nível de votação que poderemos dar respostas saudáveis. As maiorias constroem-se pelo diálogo e numa ética de compromisso – não é só a ética da convicção que comanda a vida política.

As maiorias constroem-se pelo diálogo e numa ética de compromisso – não é só a ética da convicção que comanda a vida política

Regresso ao meu argumento: Portugal está em boas condições para dar mais um passo na sua caminhada democrática, e depois de ter derrubado o muro do “arco da governação” que, selectivamente, desprezava parte do eleitorado, pode agora aspirar a uma solução inédita entre nós, mas que é corrente na UE: governo de coligação à esquerda.

Estaremos nós com a Europa que está connosco?

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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