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Investigador do CES-UC e IHC-UNL
Ponte D. António, Bispo do Porto
D. António Ferreira Gomes ficou célebre pela carta que escreveu a Salazar e que lhe valeu um amargo exílio.
31 Mai 2022, 00:00

Portugal é, segundo a sua constituição (artigo 41), um estado laico que reconhece a liberdade de culto a todas as religiões sendo que “as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”.

 A sociologia contemporânea tem dedicado uma grande atenção ao que se pode designar por “reputação” (Gloria Origgi), “distinção” (Pierre Bourdieu) ou “reconhecimento” (Axel Honneth)

Este princípio, que não admite sequer ser objecto de revisão constitucional, informa a acção do estado português na sua plenitude. Tal não significa, porém, que as organizações religiosas e os seus ministros não possam ser reconhecidos fora da esfera da sua actividade principal. A sociologia contemporânea tem dedicado uma grande atenção ao que se pode designar por “reputação” (Gloria Origgi), “distinção” (Pierre Bourdieu) ou “reconhecimento” (Axel Honneth) – mecanismos através dos quais se valoriza o capital simbólico e se dão passos para a construção de uma identidade social própria.

Através do exercício da memória e da memorialização, o estado dispõe de instrumentos importantes para moldar a imagem que grupos de cidadãos reconhecem como estruturantes da sua identidade.

Sendo o estado português, como é, um estado democrático, o universo de agentes sociais que pode escolher para lhe conferir uma distinção não pode excluir nenhum dos seus cidadãos. A liberdade de escolha que lhes assiste no tocante à religião que professam, porque é efectuada em ambiente de livre concorrência de opções possíveis, não pode ser por isso mesmo critério de exclusão de acções de reconhecimento público.

Na segunda metade do século XX, um dos nomes cimeiros da história da cidade, intimamente associado à causa da liberdade que é matricial entre a cidadania local, é o do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes

O Porto tem construído uma auto-imagem de cidade liberal no seu sentido mais amplo, abarcando aspectos culturais, sociais e económicos. Desde a Revolução de 24 de Agosto de 1820 que trouxe para Portugal o liberalismo oitocentista à veneração do coração de D. Pedro, passando pelo levantamento de 31 de Janeiro de 1891 e pela recepção calorosa ao general Humberto Delgado, em 1958, a cidade orgulha-se de ter estado sempre do lado da liberdade. Trata-se de um traço identitário profundamente enraizado nas suas gentes.

Na segunda metade do século XX, um dos nomes cimeiros da história da cidade, intimamente associado à causa da liberdade que é matricial entre a cidadania local, é o do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes (1906-1989). Ficou célebre a sua carta a Salazar que lhe valeria um amargo exílio, e na qual o ideal de liberdade se sobrepunha a todas as restantes considerações.

Outros mais versados na biografia deste prelado poderão, melhor do que eu, que não sou crente, descrever o seu contributo para a cidade. Limito-me a sublinhar que D. António partiu de uma posição dentro do seu múnus religioso e foi capaz de estabelecer uma muito necessária ponte com sectores diversos da sua sociedade.

D. António partiu de uma posição dentro do seu múnus religioso e foi capaz de estabelecer uma muito necessária ponte com sectores diversos da sua sociedade

Não falou para os católicos – falou como católico para os mais diversos estratos sociais com uma voz de humanista que transcendia as fronteiras da fé que cada um professava. De uma penada, ergueu a sua voz quando a voz da cidadania estava asperamente reprimida, e ergueu uma ponte entre os que livremente professam uma fé e aqueles que se regem por outros princípios. Nesse sentido, D. António sintonizou a sua acção destemida com a tradição liberal do Porto e foi dela um dos principais arautos.

Tem vindo a público que as autoridades municipais do Porto e de Vila Nova de Gaia se aprestam a dar um nome à nova ponte que está projectada para a zona nascente das duas cidades, e que a escolha poderia recair sobre D. António Francisco dos Santos (1948-2017). Sem desprimor pelo prelado, creio que a sua acção se restringiu à esfera religiosa, não sendo notada a sua capacidade para alargar fronteiras ao seu múnus.

Mas num contexto em que D. António Ferreira Gomes aparece como um gigante da cidade e da região, creio que seria mais avisado

Tendo vivido no Porto quase todo o tempo em que ele foi bispo da diocese, não recordo nenhum momento particularmente significativo em que a intervenção desse prelado tenha interpelado o outro que se situa fora do seu campo de católico. Talvez este bispo, por mais próximo de nós em termos temporais, possa suscitar simpatia. Mas num contexto em que D. António Ferreira Gomes aparece como um gigante da cidade e da região, creio que seria mais avisado – isto é, capaz de sublinhar uma mensagem de abrangência, ecumenismo e liberdade em linha com os pergaminhos deste burgo – que a ponte (justamente, uma ponte!) recebesse o nome do que ficará para a História como o Bispo do Porto.

 

O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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