summary_large_image
Investigador do CES-UC e IHC-UNL
Um mau exemplo
"António Costa tem várias vezes feito valer a sua condição de antigo autarca para exprimir a sua compreensão pelas criticas ao excesso de centralismo na administração pública portuguesa."
25 Jun 2022, 20:00

António Costa tem várias vezes feito valer a sua condição de antigo autarca para exprimir a sua compreensão pelas críticas ao excesso de centralismo na administração pública portuguesa. Daí que goste de se apresentar como o campeão da descentralização, e mesmo da regionalização.

No seu primeiro mandato como primeiro-ministro lançou o que apelidou da “maior reforma administrativa depois do 25 de Abril” (esquecendo, talvez, que o actual quadro das autarquias locais foi estabelecido a partir de 1976, e representa uma séria ruptura em relação ao que vigorava no Estado Novo) – uma reforma que está agora em discussão. Costa promete, mais uma vez, a regionalização em obediência a um preceito constitucional que data igualmente de 1976.

Depois de ter inscrito esse desígnio no manifesto eleitoral de 2015 (o que levou à constituição de uma comissão independente presidida pelo Eng.º João Cravinho, que esmiuçou o problema e propôs soluções concretas e exequíveis, sem tradução em iniciativa politica), reafirmando-o no manifesto de 2019, e agora vertido no programa para este mandato, poderemos perguntar: será mesmo desta feita que tal reforma verdadeiramente estrutural vai avançar?

O Presidente da República é um conhecido opositor da ideia (e terá sido em função das reservas por ele expressas que o governo ainda não avançou), mas, recentemente, deu mostras de estar convencido que o debate nacional é já suficientemente longo e esclarecedor para que se possa tomar uma decisão racional, e consequentemente de vir a viabilizar as diligências necessárias para que tal possa ser finalmente decidido.

Há muitos dados a sugerir que Portugal não anda em boas companhias nesta matéria, e que o estado central sofre de hipertrofia

Há muitos dados a sugerir que Portugal não anda em boas companhias nesta matéria, e que o estado central sofre de hipertrofia. O quadro abaixo, elaborado pela OCDE com dados de 2018, mostra para o conjunto de países desta organização, que se contam entre os mais desenvolvidos do mundo, qual o peso da despesa pública que está a cargo de entidades sub-nacionais (locais, municipais, regionais e estados federados tomadas em conjunto). E faz isso tendo em conta dois critérios em simultâneo: no eixo vertical, mostra-se o peso da despesa sub-nacional no conjunto da despesa pública; no eixo horizontal, o peso dessa mesma despesa como percentagem do respectivo PIB.

Ora, Portugal encontra-se encostado à esquerda e ao fundo da tabela (ver gráfico), significando uma percentagem reduzida da despesa sub-nacional tanto em relação ao conjunto da despesa pública (13.36%), quer em percentagem do PIB nacional (5.81%). De referir que a média da UE (ainda a 28) era de 33.66% e de 15.42%, respectivamente (ou seja, Portugal estava a cerca de 1/3 da média europeia em ambos os casos).

Subnational expenditure as a share of GDP (%)

Um exemplo prático: quando fui vereador na Câmara Municipal do Porto tive ocasião de visitar uma cidade inglesa com uma população semelhante à do Porto. Nessa altura, a CMP tinha uma folha salarial com cerca de 3.500 pessoas; essa cidade inglesa tinha 22.000. Porquê? Porque as suas competências em áreas chave como a educação – desde os edifícios escolares aos professores – e a saúde – incluindo despesas com hospitais do NHS* e respectivos profissionais a todos os níveis – dependiam maioritariamente do orçamento municipal.

Ou seja: há uma articulação próxima entre recursos financeiros disponíveis e competências atribuídas. O que o quadro nos mostra é que, nos países desenvolvidos, se confia muito mais numa política de proximidade do que em Portugal. Não deve ser por acaso.

Uma autoridade central deve ter apenas uma função subsidiária, agindo somente em questões que não podem ser decididas num plano mais local

O argumento que sustenta as vantagens da descentralização baseia-se no princípio da subsidiariedade que diz: uma autoridade central deve ter apenas uma função subsidiária, agindo somente em questões que não podem ser decididas num plano mais local. Na sua formulação moderna, este princípio deve-se a um teólogo católico alemão, Oswald von Nell-Breuning (1890-1991), e encontra-se plasmado no Tratado da União Europeia (1992). Dele se deduz que, em condições idênticas, uma decisão é mais eficaz se for tomada pela instituição mais próxima de quem vai ser sujeita aos seus efeitos.

Ao argumento da eficácia e eficiência (ou seja, de que com uma mesma quantidade de recursos se pode obter um benefício mais significativo), junta-se também o argumento democrático que relaciona quem tem o poder de tomar decisões com quem vive em situação de ser, por elas, afectado.

É de esperar que a descentralização aumente a eficiência de aplicação de recursos. Ou seja: se uma determinada tarefa for descentralizada para uma instância mais próxima dos cidadãos, o benefício de uma alocação idêntica de recursos será maior em função do melhor conhecimento da realidade a ser afectada

Concentremo-nos nos argumentos financeiros. É de esperar que a descentralização aumente a eficiência de aplicação de recursos. Ou seja: se uma determinada tarefa for descentralizada para uma instância mais próxima dos cidadãos, o benefício de uma alocação idêntica de recursos será maior em função do melhor conhecimento da realidade a ser afectada.

Por isso, o principio inscrito na lei que regula o presente processo de descentralização administrativa – o da neutralidade fiscal, ou seja, que cada elemento de competência que seja transferido deverá levar consigo uma verba igual à que lhe estava atribuída – é a pedra de toque que permite esperar uma melhoria nos serviços públicos. Ora, não parece ser isso que está a suceder.

Poderíamos discutir se as competências que o plano contempla são verdadeiramente significativas, ou se, pelo contrário, se ficam por aspectos triviais que não põem em causa o carácter centralista de grande parte das decisões administrativas.

O caso das escolas é paradigmático. Após as transferências previstas, o Ministério da Educação continuará a ser o agente directo das mais relevantes decisões

O caso das escolas é paradigmático. Após as transferências previstas, o Ministério da Educação continuará a ser o agente directo das mais relevantes decisões. Este apego aos pergaminhos do poder central não augura nada de bom para um futuro processo de regionalização. Mas o mais gravoso é que o governo tem mantido um braço de ferro com os autarcas – sobretudo aqueles que mais competências irão receber – por se esquivar a cumprir o princípio da neutralidade financeira, mormente no que toca a despesas com educação e saúde, princípio esse que está plasmado e põe iniciativa governamental na lei que regula o actual processo de descentralização.

Este apego aos pergaminhos do poder central não augura nada de bom para um futuro processo de regionalização

Parece que o governo não se dá bem nem com as suas próprias decisões! Ainda há pouco o governo não deu seguimento a uma proposta do presidente da CMP, Rui Moreira, no sentido de ser criada uma comissão independente que verificasse o cumprimento desse pressuposto. Assim sendo, só poderemos considerar o exemplo da presente tentativa de descentralização administrativa como um mau exemplo para as reformas profundas que urge contemplar.

 

*NHS – National Health Services (equivalente ao SNS Português)

 

O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

  Comentários