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Investigador do CES-UC e IHC-UNL
Um livro de média virtude
“A tese central do livro parece ser a de que existe em Portugal um modelo económico centralista que gira em torno de uma só região e se alheia do País”.
31 Jan 2022, 10:30

No período que antecedeu as últimas eleições autárquicas, o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, deu a lume um livro em co-autoria com dois economistas da cidade – Fernando Freire de Sousa e Guilherme Costa – ambos anteriormente associados politicamente às águas socialistas. O volume tem por título Balada da Média Virtude – um conceito que beberam em Agustina Bessa Luís.

Segundo a famosa escritora, “a gente do Porto, o comerciante titular de honras que escapam aos brasonados de Baião, aos cavaleiros de Cristo, aos licenciados de Coimbra, mas que pertencem também ao varino, ao amolador, ao tasqueiro da Ribeira, ao autor das primeiras poesias de “A Grinalda”, ao ourives da filigrana, ao cangalheiro que manda rezar missas pelos seus clientes, ao musical homem de tuna, ao extraordinário membro da orquestra filarmónica, de casaca verde pelo uso e amor por Beethoven – todos possuem o sentido da média virtude”. Esta ideia é, pois, apropriada para um livro cujo objectivo é propor “outras hipóteses para a economia portuguesa”.

A tese central do livro parece ser a de que existe em Portugal um modelo económico centralista “que gira em torno de uma só região e se alheia do País” e se âncora em grandes projectos de ganhos duvidosos para o todo nacional

A tese central do livro parece ser a de que existe em Portugal um modelo económico centralista “que gira em torno de uma só região e se alheia do País” e se âncora em grandes projectos de ganhos duvidosos para o todo nacional. Esse modelo desvaloriza sistematicamente a existência de uma pluralidade de modos de estruturar as relações económicas, sendo que no Norte do país esse modelo se poderia caracterizar pela prevalência de um tecido empresarial construído por um empresariado “com uma alma colectiva de média virtude”, que sobressai num ambiente de “empresas de base familiar”. É com base nesse conceito que se estruturam os capítulos analíticos do livro, os quais sustentam uma critica ao modelo de desenvolvimento nacional das últimas décadas, e abrem caminho para uma proposta que nos é apresentada no capítulo final.

Os autores são convincentes (a meu ver) no exercício que fazem em desmontar os preconceitos centralistas e tendencialmente uniformizadores do modelo de desenvolvimento económico a que temos assistido. E são subtis no modo como analisam a realidade socioeconómica da Região Norte de Portugal, acentuando os contrastes que exibe em relação a outras partes do todo nacional. No entanto – embora este ponto seja compreensível em razão do posicionamento dos autores na cena política portuguesa, muito centrada no Porto e na sua região envolvente, a despeito de putativos voos a quem alguém possa ser candidato – esta análise não se estende a outros territórios que poderiam, eles também, reivindicar uma identidade contrastante com a da Grande Lisboa que é quem, em última análise, apresenta o modelo que justifica os contrastes. Dito por outras palavras: a critica ao centralismo fica-se por uma proposta que parece contentar-se com a demonstração da existência de uma dualidade (um “dualismo económico sui generis”, como afirmam) e não tanto de uma pluralidade de modelos. O que poderiam dizer os algarvios, ou os alentejanos, ou mesmo muitos dos que vivem na zona Centro de Portugal? Terão eles modelos próprios? Ou apenas derivativos da polarização sugerida?

Não sou economista, nem pretendo discutir a caracterização das realidades sociais que nos são propostas. Mas creio que é útil reflectir sobre uma hipotética multipolaridade em alternativa à bipolarização que emerge desta obra.

Uma coisa deve ser desde já reconhecida. Logo a abrir, os autores consideram que “para um País diverso como é o nosso será excessivamente reducionista considerar que apenas existe um remédio que sirva a todas as suas regiões – a várias regiões, do ponto de vista da sua tradição e cultura e da sua base económica e industrial, terão de corresponder vias adequadas à realidade concreta em presença” (p. 13) – e que, em coerência, as suas propostas se adequarão mais à região “onde vivemos e melhor conhecemos”.

Posto isto, seria de esperar que o livro dedicasse algum espaço a discutir as soluções institucionais que poderiam permitir a cabal expressão de uma política descentralizada. Se a motivação próxima para esta publicação parece ser a necessidade de evitar que a aplicação dos dinheiros da chamada bazuca europeia se traduzam em “mais do mesmo” e não tanto num “mudar de vida” que por muitos é apregoado como objectivo sem suporte em medidas visíveis que o legitimem, a verdade é que há um ambiente político e administrativo que condiciona, e a meu ver de forma determinante, as hipóteses de êxito de tão profunda reforma.

Embora o tema seja de facto abordado no capítulo final, apenas 4 páginas são dedicadas às “experiências na dimensão institucional e política” (pp. 263-267). Para os autores, “o dilema democrático que subjaz a todo o estado de coisas a que viemos a ser conduzidos é, muito cruamente, o de uma rendição sem condições acompanhada de um distraído fingimento de grave miopia ou, em contraponto, o de uma procura de novas soluções, eventualmente mais delimitadas e parciais e menos imediatas, mas seguramente mais capazes de irem fazendo caminho no seio da sociedade portuguesa” (p. 265). Nesse sentido, a proposta original que avançam é a da criação de “assembleias de cidadãos” – repescando experiências levadas a cabo em países estrangeiros, e capazes de dar origem a um “Fórum dos Cidadãos”. Seria esse o meio de obter o “conforto da ‘proximidade’ institucional” de que as “empresas viáveis” necessitariam, o qual não tem sido bem tratado “pela acção recorrente de lamentáveis e transversais procedimentos marcados por uma incompreensível dominante político-partidária” (P. 264).

Nem sequer se poderia argumentar que o mandato de Rui Moreira à frente do município do Porto – um exercício do poder efectivo na qualidade de “independente” alegadamente distanciado das lógicas partidárias que dizem execrar – nos pode abrir uma frincha de janela por onde avistar um modelo de participação cívica de cunho alternativo a propostas de reforma da administração publica

O que se me oferece comentar é que entre a rejeição de uma via reformista das estruturas do Estado (alegadamente ferida – de morte? – pelo pecado original da contaminação partidária) e a imensa vaguidão da proposta das “assembleias de cidadãos” o livro navega na imprecisão da proposta institucional que deveria albergar o “mudar de vida” que almeja. Nem sequer se poderia argumentar que o mandato de Rui Moreira à frente do município do Porto – um exercício do poder efectivo na qualidade de “independente” alegadamente distanciado das lógicas partidárias que dizem execrar – nos pode abrir uma frincha de janela por onde avistar um modelo de participação cívica de cunho alternativo a propostas de reforma da administração publica.

Dando um contributo interessante para pensar “outras hipóteses para a economia”, o livro deixa essa mesma economia a vogar num terreno etéreo, desligado das estruturas político-administrativas que a envolvem, e em grande medida, do debate que atravessa a sociedade portuguesa em torno da reforma constitucionalmente prevista: a regionalização. É por isso que o considero um livro de média virtude.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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