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Investigador do CES-UC e IHC-UNL
Para além das eleições autárquicas
“Tem sido inúmeras vezes repetido – e com um fundo de verdade – que a conquista de um poder local democrático é uma das mais relevantes realizações da nossa democracia.”
15 Set 2021, 00:00

Portugal vai a votos no dia 26, tendo em vista eleger as suas autarquias. Trata-se de uma eleição que se repete regularmente desde 1976, mas que tem como pano de fundo uma divisão administrativa do país com quase duzentos anos: foram as reformas liberais do fim da guerra civil, impulsionadas por Mouzinho da Silveira ou Passos Manuel, quem redefiniu o mapa dos poderes locais. À época, havia uma lógica na profunda reforma dos “concelhos” – entidades com fundas raízes na história portuguesa, mas com acentuadas diferenças regionais e vicissitudes que impedem uma leitura linear do seu desenvolvimento, e muito menos justificam uma suposta “tradição municipalista” com expressão nacional.

Era então possível justificar a freguesia como entidade da vida quotidiana, o concelho e sua sede como um espaço onde se podia ir e voltar no mesmo dia, e o distrito como aquela divisão administrativa cujos serviços podiam requerer uma deslocação de um dia em cada sentido.

A par de desenvolvimentos nas funções do Estado, a revolução tecnológica e seu impacto nas comunicações e transportes tornam esta visão profundamente anacrónica, razão pela qual se tem vindo a falar insistentemente numa nova reforma.

A maior reforma do poder local pós-25 de Abril consiste na transformação dessas unidades administrativas em órgãos escolhidos pelo conjunto dos cidadãos em eleições livres, opondo assim uma lógica democrática ao atavismo autoritário que designava os seus titulares sem consulta publica.

Tem sido inúmeras vezes repetido – e com um fundo de verdade – que a conquista de um poder local democrático é uma das mais relevantes realizações da nossa democracia

Em grande parte, esta visão optimista está ligada à capacidade do poder local em suprir carências básicas das suas populações. Foram as obras em infraestruturas físicas e no apoio à implantação de um Estado Social que geraram a fama de que ainda hoje largamente beneficia. No entanto, a capacidade das autarquias de responder aos problemas do desenvolvimento tem sérios limites. Não me refiro à visão propalada entre certas elites muito críticas da política de “rotundas com monumentos ao bombeiro” – com o que isso revela de insuportável sobranceria – mas antes a dois outros problemas: o da limitadíssima capacidade de articulação com entidades congéneres (de que as Comunidades Intermunicipais são exemplo flagrante de um inferno cheio de boas intenções), e da definição legal das suas competências e respectivo envelope financeiro de suporte.

Anuncia-se que o próximo mandato autárquico irá assistir ao desenvolvimento da “maior reforma descentralizadora depois do 25 de Abril”, com a atribuição de novas competências e novos fundos, seja através de transferência do Orçamento de Estado, seja da aplicação do Plano de Recuperação e Resiliência. No entanto, é preciso não esquecer qual o ponto de partida: Portugal é um dos países da Europa com um sistema administrativo mais centralizado. Segundo dados da OCDE e da União Europeia, os órgãos de poder sub-nacional são responsáveis (em 2017) por 33.5% da despesa publica global, sendo que ao poder local cabem 23.3%. Em Portugal, este nível (que junta às autarquias locais as Regiões Autónomas) queda-se por 12.6% – o que dará para as autarquias cerca de 10% da despesa publica. Estamos, assim, a menos de metade da média da União, e temos atrás de nós países onde o problema mal se põe como Chipre, Luxemburgo ou Malta.

Verifica-se no nosso país uma disjunção entre aquilo que os cidadãos esperam das autarquias e as respostas que estão ao alcance destas

Contrariando um discurso que se ouve amiúde e que aponta para o “anonimato” das eleições legislativas como uma das razões fundamentais para elevadas taxas de abstenção, uma análise sumária dos processos eleitorais autárquicos – onde a personalização das candidaturas é por demais evidente – evidencia que a abstenção é nestas últimas mais elevada. Interpreto esta constatação como manifestação de uma descrença na capacidade das Câmaras e Juntas de Freguesia intervirem decisivamente na vida quotidiana dos seus cidadãos.

Reforçar competências e dotar as autarquias de fundos mais significativos é um passo necessário. Mas é importante reflectir também sobre os limites que uma atitude como essa pode acarretar. A nossa Constituição prevê desde 1976 que se criem novas unidades administrativas de âmbito regional, abarcando no seu seio mecanismos de promoção do desenvolvimento harmónico de vastas áreas que tudo têm a ganhar em ser consideradas no respeito pela sua voz. Essa é uma reforma essencial que não deve ser confundida com o repensar do quadro actual das autarquias locais.

 

O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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