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Investigador do CES-UC e IHC-UNL
25 de Abril – heróis e vilões
Na verdade, o golpe militar teve autores. Gente de carne e osso (...) Esse dia que eles todos fizeram é maior do que qualquer um deles.
25 Abr 2022, 16:00

A História que está na base das narrativas identitárias socorre-se frequentemente de datas com uma elevada carga simbólica. Os historiadores profissionais gostam de pegar nessas datas e esmiuçar-lhes o alcance, mostrando como os processos de que elas são a parte mais visível se estendem no tempo, por vezes por períodos muito longos. São por vezes referidas como “datas criticas” dado que o que sucedeu nesse particular dia teve repercussões muito para além das suas 24 horas.

Veja-se o caso da “primeira tarde portuguesa”, que desde Alexandre Herculano se situa no dia 24 de Junho de 1128, data da Batalha de São Mamede na qual as tropas de Afonso Henriques, apoiado por sectores importantes da nobreza portucalense, venceram as de sua Mãe, D. Teresa, do conde Fernão Peres de Trava, e de muitos outros nobre galegos. É nesse episódio que se filia, em ultima instância, o reconhecimento de Afonso Henriques como rei de um novo país pela Bula Manifestis Probatum do Papa Alexandre III em 1179. Foram mais de 50 os anos que demorou a consagração do que fora conseguido num só dia. Datas marcantes da História de Portugal, desde o 14 de Agosto de 1385 (Batalha de Aljubarrota) ao 24 de Agosto de 1820 (Revolta Liberal no Porto que haveria de marcar a instauração de um novo regime que duraria até ao 5 de Outubro de 1910) passando pelo 1 de Dezembro de 1640 (início da Guerra da Restauração que duraria 28 anos) encerram processos semelhantes.

O 25 de Abril é, sem dúvida, uma das datas marcantes da nossa História. Com ele se abriu um triplo processo – descolonização, democratização, desenvolvimento. O primeiro acabou por durar até 2002, quando foi proclamada a independência da última colónia – Timor-Leste; a democratização ficou estabelecida na Constituição de 1976 e tem-se vindo a consolidar e afinar; e o desenvolvimento é um processo sem fim que acelerou significativamente desde então, com maior visibilidade depois da adesão de Portugal à então CEE, hoje União Europeia. É assim necessário olhar para um arco cronológico alargado para avaliarmos a densidade das transformações proporcionadas pelo 25 de Abril.

Como é próprio de um processo democrático, o dia 25 de Abril de 1974 não definiu os contornos específicos do projecto político posterior. Pelo contrário: abriu as portas a que uma pluralidade de actores sociais pudessem expressar-se no espaço publico, rivalizando nas soluções propostas. E estas foram imensas! Cada português teve o ensejo de defender as suas ideias num ambiente concorrencial, a princípio pouco definido do ponto de vista institucional. Olhando para trás, cada um pode avaliar se a sua posição teve vencimento ou se, pelo contrário, os seus sonhos ficaram pelo caminho.

Não tenho nenhum engulho em dizer que imaginei uma outra revolução – mas sinto-me satisfeito com o desempenho do regime que conseguiu mobilizar mais apoios e triunfar sobre o que eu próprio desejei. Era inevitável que um acto de tamanha radicalidade como esse não suscitasse unanimidade. E que tenha gerado divergências, precisamente pela amplitude das opções que permitiu.

Tenho por certo que todo o processo que conduziu à instalação do regime democrático em que vivemos, tumultuoso como foi, é tributário de um gesto inicial: o derrube, no dia 25 de Abril de 1974 – e não noutro qualquer – do Estado Novo de Salazar e Caetano. Esse foi um gesto matricial. Sem ele nenhum outro desenvolvimento teria sido possível. É verdade que cedo transpareceu que a Revolução haveria de ser bem mais complexa do que o golpe de estado militar – desde a recepção a Mário Soares em Santa Apolónia à encenação da chegada de Cunhal ao aeroporto de Lisboa, com a famosa foto dele rodeado de um soldado e um marinheiro, passando pela pressão para a libertação dos presos políticos, e culminando na gigantesca manifestação do 1º de Maio. O próprio golpe fora em si um momento de convergência entre várias correntes. E é isso que vale a pena recordar hoje. A convergência pode ter-se esgotado nesse dia. Os seus efeitos, não.

Na verdade, o golpe militar teve autores. Gente de carne e osso. Uns que assumiram posições proeminentes no espaço publico. Outros que permanecera, na sombra. Uns que cedo se afastaram do rumo que a revolução estava a seguir. Outros que nela se empenharam com propósitos radicais. Uns que faziam a ponte com a hierarquia militar. Outros que procuravam apoios na mobilização das camadas populares. Poderíamos continuar a apontar as divergências que perpassavam aqueles que se empenharam – muito ou pouco – na condução das operações que depuseram o Estado Novo.

O que desejo realçar, porém, é o contrário: que eles, por um dia que fosse, convergiram com o sentimento da esmagadora maioria da sociedade portuguesa que execrava a guerra, a censura, o autoritarismo, a repressão.

Esse dia que eles todos fizeram é maior do que qualquer um deles. É tentador – e justo – falar de Salgueiro Maia como aquele que melhor simboliza o desprendimento de quem avançou pela pureza de um ideal. Porém, Salgueiro Maia foi uma andorinha, e a primavera foi feita com muitas mais. Vasco Lourenço elaborou uma lista dos militares que puseram de pé o plano completo de operações, e dos que a ele aderiram em boa hora, permitindo neutralizar as forças do velho regime. Consta que se trata de duas centenas de nomes – uns mais polémicos, outros menos conhecidos. Admito que essa lista tenha sido elaborada com critérios objectivos por quem teve um conhecimento em primeira mão – e é com esse pressuposto que me pronuncio. E que pudesse ser complementada por outra com os civis que prestaram apoio directo aos militares revoltosos (que também os houve!).

Ora, essa lista, que já tem décadas de existência, terá sido proposta a vários Presidentes da República com o intuito de ser prestada uma homenagem nacional por via de uma condecoração (Ordem da Liberdade ?) – o que só muito parcialmente foi acolhido (sendo que alguns dos nomes mais polémicos já terão recebido honrarias). Parece, no entanto, que o actual PR está na disposição de dar seguimento à proposta de Vasco Lourenço e atribuir condecorações a todos eles.

O anuncio desta posição de Marcelo Rebelo de Sousa suscitou, sobretudo à esquerda, uma vaga de reacções negativas. Julgo que não haverá motivos ponderosos que sustentem essa critica. O 25 de Abril não encerrava um modelo de sociedade e de organização politica – abria as portas a uma saudável competição entre diferentes credos e soluções. E que coragem foi necessária para abrir desse modo o placo político! Como já disse, o 25 de Abril, na sua acepção mais restrita, foi ainda assim maior do que qualquer dos seus intervenientes directos, porque emerge como momento critico de um processo longo e complexo com final feliz. Não pode ser manchado por escolhas posteriores entre “heróis” e “vilões”. Pessoalmente, não aprecio a memória de vários dos rostos que vi logo nessa noite – mas não me sinto capaz de lhes retirar o mérito de me terem dado uma das mais fecundas alegrias da minha vida.

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