

25 de Abril de 1974!
Soubemos do Golpe de Estado, através de uma Rádio Sul-Africana. O meu pai ficou muito feliz, porque os filhos iam crescer numa Angola independente! Rapidamente essa alegria, transforma-se em insegurança com as lutas dos 3 movimentos: MPLA, UNITA e FNLA.
Esta situação levou que, em finais de 1975, regresse à terra do meu pai, acompanhada com a minha mãe e os meus irmãos, uma viagem que recordo e que pretendo homenagear todas as mães-coragem que fogem de uma guerra e se lançam em caminhos desconhecidos à procura de um abrigo seguro.
Tinha apenas 5 anos, os meus irmãos 6 e 8, a minha mãe com 29 anos de idade lançou-se sozinha numa viagem que desconhecia o destino. Hoje, revejo esses momentos no rosto de todas as mães ucranianas que carregam seus filhos e se despedem na incerteza de rever os seus homens.
Hoje, revejo esses momentos no rosto de todas as mães ucranianas que carregam seus filhos e se despedem na incerteza de rever os seus homens
A minha mãe conta que chorava muito, das lágrimas não me lembro, mas recordo-me do pânico gerado quando se ouvia o som das metralhadoras e dos rockets prestes a explodirem sabe-se lá onde! Não tinha, naquela altura, a perceção da sua gravidade, mas estes sons se transformavam numa corrida louca para debaixo das camas ou das mesas lá de casa, eram os nossos bunkers.
Vivemos os primeiros sinais de insegurança numa emboscada, a nossa sorte foi que um dos homens armados reconheceu o meu pai e apelou para que nos deixassem seguir. Alguns dias depois, somos surpreendidos pelos primeiros tiros de metralhadoras e rockets em pleno dia, após a hora de almoço.
A surpresa do ataque, aterrorizou-nos. Este dia permanece em mim, a angústia da minha mãe, à porta de casa, ansiosa pelo regresso do meu irmão mais velho que tinha ido passear de bicicleta com os amigos, é uma memória que teima em não se apagar, nem o tempo consegue amenizar.
Vivemos três dias sob a escuridão de um corredor lá de casa. Não havia o aviso prévio do som das sirenes a antecipar um ataque, a surpresa do som atroz dos tiroteios, o barulho de homens armados que circundavam a casa e que facilmente podiam invadi-la eram o perigo! Foram dias de sobressalto e o medo tomava conta da única decisão: “temos que ir embora”.
O meu pai, à semelhança de todos os homens ucranianos ficou, não para vestir uma farda, mas para levar a cabo o compromisso que “só se ia embora depois de pagar os ordenados e fornecer os documentos necessários para os funcionários do Caminho de Ferro de Sá da Bandeira poderem garantir o futuro”. Enquanto isto, a minha mãe embarcava sozinha com três filhos para a grande viagem “que teria volta”, pensava ela.
Agora, diariamente, somos inundados com imagens da guerra da Ucrânia, invadida pela Rússia e assistida por todos, em tempo real. Os que ficam comunicam com os que partem e vice-versa. Na nossa viagem foi tudo às escuras, sem notícias, sem se saber que, quem ficava se mantinha vivo e se quem partia chegava ao destino em segurança. Foram dias e dias de silêncio, de plena escuridão.
Na nossa viagem foi tudo às escuras, sem notícias, sem se saber que, quem ficava se mantinha vivo e se quem partia chegava ao destino em segurança. Foram dias e dias de silêncio, de plena escuridão
A fuga começou numa fragata de guerra de Moçâmedes para Luanda com duração de dois dias em alto-mar. O porto estava repleto de famílias, éramos centenas, a agitação e o burburinho das despedidas antecipavam o fim da “África Minha”. O convés da fragata era um amontoado de pessoas, colchões e pertences. Estava assustada, as ondas que batiam na embarcação amedrontavam-me. Tinha apenas 5 anos, mas ainda navega na minha mente esta viagem. Quando vejo as crianças ucranianas acompanhadas pelas suas mães a fugirem da Ucrânia em lágrimas, revejo-me em cada uma delas – somos as vítimas silenciosas da guerra.
Quando vejo as crianças ucranianas acompanhadas pelas suas mães a fugirem da Ucrânia em lágrimas, revejo-me em cada uma delas – somos as vítimas silenciosas da guerra
Quando chegamos ao aeroporto de Luanda as filas eram intermináveis, só ao fim de uns dias conseguimos as passagens de avião para Lisboa. Durante estes dias, estivemos refugiados numa escola em Luanda, onde a espera se fazia em cima de um chão encharcado de água, onde os colchões eram o pouso seco da imundice que vinha das casas de banho. Restava-nos, apenas, o conforto das rações de combate para acalentar os dias. Já a espera de uma grande parte das mães ucranianas é debaixo de fogo e da incerteza da chegada, com vida, a um porto de seguro.
Embarcamos como “sardinhas enlatadas” dentro do avião. Eu viajei ao colo da minha mãe, os meus irmãos ocupavam apenas um lugar. Viajámos numa companhia sueca, onde havia apenas uma hospedeira portuguesa que nos tratava com indiferença e frieza. As crianças berravam dentro do avião, devido ao calor insuportável, o desespero e aflição das mães em sossegarem os seus filhos era ignorada pela tripulação. As primeiras “sirenes humanas” de uma chegada indesejada.
Felizmente, hoje, assistimos a uma preocupação generalizada em criar as melhores condições à receção dos refugiados ucranianos. O carinho com que os voluntários aconchegam o povo ucraniano transporta-me para a maldade com que alguns portugueses receberam os seus em 1974, que designavam como “portugueses de segunda”
Felizmente, hoje, assistimos a uma preocupação generalizada em criar as melhores condições à receção dos refugiados ucranianos. O carinho com que os voluntários aconchegam o povo ucraniano transporta-me para a maldade com que alguns portugueses receberam os seus em 1974, que designavam como “portugueses de segunda”.
Na altura, na chegada a Portugal, o meu irmão mais velho pergunta à minha mãe se havia algum mal em virmos de África, pois, uma senhora dirigiu-se para outra que se fazia acompanhada de uma criança que estava a comer chocolate e gentilmente quis repartir o chocolate com ele, quando a tal senhora, sem escrúpulos, interferiu dizendo: “Não dês, são retornados”. Sons de revolta que ressoam na alma há 47 anos.
“Não dês, são retornados”
Chegámos a Lisboa exaustos, sujos e famintos. As filas intermináveis para as bilheteiras, na estação de Santa Apolónia, obrigavam a minha mãe a permanecer e a ignorar a nossa impaciente fome. De repente, calámo-nos, as lamúrias foram abafadas por uma enorme sandes que humildemente nos deram sem deixar rasto. Ainda hoje choro ao contar esta história, muito mais havia para contar…
Do som das metralhadoras e rockets ao toque das sirenes, passaram 47 anos… De Angola apenas me lembro da guerra!













Deixe um comentário
Tem de iniciar a sessão para publicar um comentário.