Cerco do Porto, Lagarteiro e Falcão são bairros sociais situados na periferia da cidade. Desde 2018, estes bairros do Porto têm sido o local de intervenção de um projeto que visa a construção dos chamados “corredores saudáveis” no âmbito do Urban Innovative and Inclusive Nature – URBiNAT, um projeto apoiado pela Comissão Europeia (CE) que está a ser implementado em sete cidades da Europa: Hoje-Taastrup (Dinamarca), Bruxelas (Bélgica), Nantes (França), Nova Gorica (Eslovénia), Sofia (Bulgária), Siena (Itália) e Porto.
O EuroRegião conversou com três coordenadores do URBiNAT, são quatro, a Natalie Nunes, especialista em direitos humanos, não pôde estar presente na conversa.
“O projeto URBiNAT é um consórcio de 28 parceiros cuja coordenação está no Centro de Estudos Sociais (CES), Universidade de Coimbra”, começa por dizer Gonçalo Canto Moniz, arquiteto e um dos quatro coordenadores. “É um projeto interdisciplinar que exige uma coordenação científica partilhada, cada um com o seu conhecimento e a sua perspetiva de modo a podermos dialogar com um conjunto alargado de parceiros”, afirma. Para além de atuar no espaço físico das cidades, o projeto propõe desenvolver vários conceitos que acompanham a regeneração urbana – participação; espaço público; direitos humanos e cooperação internacional; economia social e solidária. “É nesse sentido que estabelecemos a nossa complementaridade”, acrescenta o arquiteto.
Trabalhei muitos anos numa Câmara Municipal e deparei-me, de facto, com os desafios que é envolver os cidadãos nas questões da governação municipal…
É nessa “complementaridade” de perspetivas que se junta a geógrafa Isabel Ferreira. A cocoordenadora é investigadora no CES na especialidade da Governação Urbana: “trabalhei muitos anos numa Câmara Municipal e deparei-me, de facto, com os desafios que é envolver os cidadãos nas questões da governação municipal e, portanto, a temática que trabalho dentro do URBiNAT é precisamente esta: cocriar soluções para o espaço público participado entre cidadãos, organizações locais, técnicos e políticos das câmaras municipais”.
Porto, Nantes e Sofia são as cidades “Front-Runners”
A cidade do Porto é a representante nacional do projeto. “Tínhamos alguns critérios para identificar as cidades parceiras e definimos três tipos: As “front-runners”, que são cidades com mais experiência na implementação de soluções baseadas na natureza e na cultura da participação urbana; as “Followers”, que são cidades com interesse em desenvolver políticas urbanas associadas à natureza; as “cidades-observadoras”, que são cidades fora da Europa que observam a implementação das metodologias do URBiNAT e depois irão, eventualmente, desenvolver elas próprias processos de regeneração urbana”, descreve Canto Moniz.
O Porto surgiu como uma cidade que estava, e está, a fazer um conjunto de experiências de implementação de soluções baseadas na natureza…
A disponibilidade dos municípios foi um fator-chave para encaixar no perfil do projeto. “O Porto surgiu como uma cidade que estava, e está, a fazer um conjunto de experiências de implementação de soluções baseadas na natureza”, declara Moniz. “Era, também, uma cidade próxima de nós, do Centro de Estudos Sociais. Uma vez que não foi possível incluir Coimbra como “Front-Runner”, e como nós gostaríamos de acompanhar de perto uma cidade portuguesa, foi o Município do Porto que demonstrou disponibilidade e interesse em participar”, afirma Canto Moniz, também professor de arquitetura na Universidade de Coimbra.
As sete cidades que participam no URBiNAT correspondem a uma ampla distribuição geográfica pela Europa. “São contextos sociais e ambientais diferentes, com metodologias diferentes, mas comparáveis” garante o arquiteto.
A implementação do projeto coorganizou-se por quatro fases: co-diagnóstico, co-projecto, co-implementação, co-monitoramento. O objetivo é ir “mais além do que tem sido o processo convencional de se fazer o planeamento urbano”, declara Isabel Ferreira. Começando por envolver os cidadãos logo na fase de diagnóstico, isto porque “normalmente, os processos em que há participação pública são apresentados numa fase mais avançada”, esclarece. “Ou seja, já foi feito um diagnóstico, um desenho e já são apresentadas aos cidadãos propostas bastante elaboradas e bastante avançadas, também. O que o URBiNAT propõe é que o envolvimento do cidadão comece logo na fase de diagnóstico. Isso foi, aliás, um dos critérios da União Europeia”, lembra.
O desafio que colocámos foi: o que é uma solução baseada na natureza?
“Começamos por perguntar aos cidadãos, às organizações locais e aos municípios quais são e como sentem as necessidades e ambições que têm para os territórios onde o URBiNAT vai intervir. No caso do Porto, são bairros de habitação social. Perguntámos a quem lá vive, a quem lá intervém (organizações locais) e à empresa municipal que gere a habitação social. A partir dessa primeira etapa, desenhamos um processo de orientação para perceber qual é a cultura de participação de cada cidade. Pois, cada cidade tem práticas e formas de interagir e dialogar com os seus cidadãos diferentes. Esse levantamento, permitiu-nos desenhar novas formas de integração no processo participativo”, assegura a geógrafa.
Concluída a fase de diagnóstico, desenham-se os processos
De acordo com Gonçalo Canto Moniz, foi nesta transição que se desafiou os cidadãos a encontrarem a resposta para suas necessidades em termos do espaço físico e social. “O desafio que colocámos foi: o que é uma solução baseada na natureza?”, questiona o arquiteto. “As pessoas estavam muito habituadas ao corredor verde e aqui o nosso desafio foi mostrar que se pode ir mais além desse “verde”, que se pode adicionar camadas, porque um corredor verde é mais do que verde. É um corredor saudável”, responde.
O leque de soluções baseadas na natureza, que as cidades estão a construir, estão muito vocacionadas para questões ambientais e, no caso do URBiNAT, as três cidades “front-runners” acabaram, também, por identificar soluções relacionadas com o espaço público nas suas dimensões material e imaterial.
“São soluções educativas feitas nas escolas, de caráter cultural, que procuram valorizar as tradições, as memórias e a cultura local, ou seja, procura dar autoestima às populações que vivem nas periferias que, de um modo geral, são vistas como áreas de residência menos interessantes e isso não é verdade.
Por exemplo, no caso do Porto, o local de intervenção aproxima-se de um parque urbano, no caso de Sofia e Nantes têm outro tipo de estruturas mais lineares onde acontecem diversas atividades e, portanto, tem sido interessante perceber como cada cidade se apropriou deste conceito de corredor saudável.
Do projeto para a implementação
A socióloga Beatriz Caitana Silva, também coordenadora do projeto e investigadora no CES introduz um novo termo à conversa, “os comités de acompanhamento” que são representações locais com o papel de colocar todas as pessoas a discutir as soluções propostas. Segundo a cocoordenadora, esta metodologia foi desenhada pelo CES que propôs que fosse representado por todos os atores de modo a confluir conhecimento. “Trata-se de uma interação real entre todos os envolvidos no projeto: cidadãos, organizações locais, técnicos dos municípios e cientistas”, explica a investigadora que integra um grupo de estudos sobre a economia solidária e intervém na relação da regeneração urbana com a economia solidária.
Quando se chega ao momento das decisões finais, há uma tendência de se fechar essa discussão dentro das câmaras municipais. Nesse patamar, o diálogo é mais técnico e político, deixando o público de fora.
“Quando terminámos a fase de diagnóstico e entrámos no projeto percebemos que havia uma dificuldade comum, que era o momento da decisão final”, reforça Isabel Ferreira. “Quando se chega ao momento das decisões finais, há uma tendência de se fechar essa discussão dentro das câmaras municipais”, acrescenta. “Nesse patamar, o diálogo é mais técnico e político, deixando o público de fora.
O mesmo acontece nos Orçamentos Participativos onde as câmaras municipais e os seus técnicos vão avaliar internamente a viabilidade de todas essas propostas. “É um diálogo feito mais entre os técnicos e os políticos e as organizações locais e cidadãos ficam de fora e aqui acaba por se perder alguma transparência no processo decisório”, lamenta a geógrafa. Perde-se a oportunidade de demonstrar aos cidadãos como é que funcionam as decisões dentro das câmaras municipais, acrescenta. “Muitas vezes, há interesses que não estão claros e ao ficar visível, todo esse processo torna-se mais claro. Abre espaço para a negociação aberta em que se permita a interação entre todos e, portanto, os comités vieram trazer essa camada de decisão aberta. Na verdade, o que vemos muito nas cidades são processos de regeneração urbana que não passa por este método”, afirma a geógrafa.
Os comités de acompanhamento são representações locais com o papel de colocar todas as pessoas a discutir as soluções propostas.
Os comités de acompanhamento foram, então, criados nas cidades “front-runners”. Em alguns casos, já existiam grupos parecidos. Noutros criaram-se de raiz. “No caso de Nantes já tem uma estrutura municipal com um longo histórico de políticas públicas que envolve tanto a comunidade como os órgãos públicos. Esse contexto local muito participativo facilitou muito, aliás, a experiência de Nantes é fundamental pois esta rede preexistente foi muito favorável no projeto”, lembra Beatriz. No Porto e Sofia, foram criados de raiz.
A “experimentação” é também parte da 3ª fase do projeto e consiste em atividades organizadas junto das comunidades. “Por exemplo, ainda em outubro, vai haver um mercado de economia solidária no Porto, que é parte dessa experimentação”, anuncia a socióloga.
A monitorização é a última fase do processo de cocriação, mas não o encerra
“Esta última fase está relacionada com uma vertente que vem das Ciências Sociais e Humanas que coleta a perceção das pessoas”, declara Beatriz. “Coletamos informação sobre o espaço urbano e observamos como as pessoas usam, e vão usar, esses corredores e verificar os seus efeitos. Avaliamos o processo, mas não o resultado final porque este ainda não está implementado, mas já está a gerar mudanças sociais”.
A componente física do URBiNAT passa pela construção de corredores saudáveis.
A componente física do URBiNAT passa pela construção de corredores saudáveis. No caso do Porto, este corredor irá surgir na zona de Campanhã. Ao mesmo tempo, a componente social, nomeadamente, os seus efeitos sociais, políticos e ambientais têm um papel significativo no projeto. “A componente imaterial é muito importante”, ressalva Beatriz Caitana Silva. E ambos estão correlacionados, pois “a barreira física transforma-se em barreira social”, acrescenta Gonçalo Canto Moniz, dando o exemplo de Campanhã, que tem a Via de Cintura Interna (VCI) a separar esta zona e a colocar este território “numa periferia física e social”.
A implementação deste projeto enquadra-se numa zona complexa da cidade do Porto. Primeiro, porque está numa zona de ferrovia, como é o caso da Estação de Campanhã (e do Metro). Segundo, porque é atravessada pelas autoestradas que dão acesso à ponte do Freixo. Em terceiro lugar, trata-se de uma zona bastante degradada e circundada por bairros sociais que estão isolados da cidade pelos motivos apresentados anteriormente.
Ultrapassar as barreiras e vencer os desafios
A Câmara Municipal do Porto já está a intervir na zona com vários projetos e obras no âmbito da Operação de Reabilitação Urbana (ORU) de Campanhã onde se integra o URBiNAT. Estas iniciativas vão permitir ampliar a área de influência do corredor saudável e de todo o sistema de mobilidade pedonal, atravessando a VCI e ligando os bairros de habitação. “O corredor saudável vai melhorar a experiência das pessoas que vivem, trabalham e visitam Campanhã”, promete o arquiteto.
O corredor saudável vai melhorar a experiência das pessoas que vivem, trabalham e visitam Campanhã.
O URBiNAT terá um impacto paisagístico e social para a zona oriental da cidade do Porto com a construção do novo Parque Alameda de Cartes, que materializa o corredor saudável. A pandemia atrasou um pouco o projeto, mas de acordo com Gonçalo Canto Moniz, prevê-se o lançamento do concurso público e o arranque das obras no primeiro semestre de 2022.
O projeto conta com 13 milhões de euros financiados pela Comissão Europeia para o consórcio internacional de 28 parceiros.
Foto de capa:
Largo do Falcão, Corredor Saudável, Campanhã, Porto, 2021. UC/CES