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Consultor de Comunicação
Lições do passado
“Moscovo, nas últimas horas, invadiu militarmente a Ucrânia, numa clara violação do direito internacional e estará às portas de Kiev”.
24 Fev 2022, 11:30

Nos anos 90 do século passado, o mundo assistia com horror ao regresso da guerra ao teatro europeu. O conflito na Jugoslávia, que dividiu, maioritariamente, sérvios, croatas e bósnios, foi também um teste (falhado) à unidade europeia e à sua política externa. A UE era na altura um projeto consolidado com algumas intenções – existia a então Comunidade Europeia (CE) que, com a assinatura do tratado de Maastricht, em 1993, daria lugar à União Europeia e à vontade de aprofundamento para um projeto comum. A PESC (Política Externa e de Segurança Comum) só seria uma realidade (pouco) efetiva a partir de então.

Se a memória não me falha, a Eslovénia – talvez porque tenha apanhado a comunidade internacional de surpresa – foi a primeira das ex-repúblicas jugoslavas a conseguir a sua independência, reconhecida pela CE logo em 1991. A Croácia tentou fazer o mesmo, tendo como consequência a entrada do Exército da então Jugoslávia no seu território para defender a minoria sérvia.

Desta altura, reza o mito urbano que a guerra na Jugoslávia serviu de palco para França e Alemanha voltarem a lutar entre si após a II Guerra Mundial

Com a Croácia, a Europa dividiu-se, com a Alemanha a legitimar unilateralmente a independência de Zagreb sob os fortes protestos da França, que apoiava historicamente Belgrado. Desta altura, reza o mito urbano que a guerra na Jugoslávia serviu de palco para França e Alemanha voltarem a lutar entre si após a II Guerra Mundial, com mercenários/voluntários e militares de bandeira falsa (um conceito que volta a ter agora toda a atualidade na Ucrânia) a combaterem pela Sérvia e pela Croácia, respetivamente, ao mesmo tempo que Paris e Berlim faziam juras de amor eterno de fidelidade à construção europeia.

Em 2008, a unidade de uma política externa europeia comum voltaria a ser colocada em causa com o Kosovo, cuja independência unilateral foi proclamada pelos líderes albaneses locais, argumentando esta com a validade de um referendo realizado em 1999, que apurou que 99.98% dos votantes desejava a separação da Sérvia. Esta independência foi imediatamente reconhecida pelos EUA, a que se seguiram uma miríade de países. Também aqui, a UE conseguiu não falar a uma só voz: a França e o Reino Unido acompanharam Washington, Alemanha e Itália uns dias mais tarde e Portugal uns meses depois. Ainda hoje, Espanha, Grécia, Roménia, Eslováquia e Chipre (países que têm problemas internos para resolver em matérias de desejos autonómicos e independentistas) não reconhecem o Kosovo.

Avançamos para 2014 e seguimos para território ucraniano, com as repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk a declararem a sua independência face a Kiev após um referendo não reconhecido por nenhum Estado (nem, na altura, por Moscovo que, por estes dias, deu o “selo de garantia” que os independentistas procuravam há vários anos e cujas consequências desta decisão estamos ainda a medir de uma forma quase diária).

Moscovo, nas últimas horas, invadiu militarmente a Ucrânia, numa clara violação do direito internacional e estará às portas de Kiev

À hora que escrevo estas linhas, o presidente russo Vladimir Putin admitiu que quer toda a região do Donbass independente – mesmo a parte que é controlada pela Ucrânia – e não apenas as repúblicas secessionistas. Moscovo, nas últimas horas, invadiu militarmente a Ucrânia, numa clara violação do direito internacional e estará às portas de Kiev.

Acredito que, no limite, Donetsk e Luhansk até podem conseguir algo parecido com o que existe neste momento com as repúblicas georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul, “legitimadas” por Moscovo em 2008 e que, passados 14 anos, são reconhecidas também pela Venezuela, Nicarágua, Síria, Nauru e Vanuatu.

O que se passa com a Ucrânia, as tentativas de destabilização russas no território e a invasão militar russa à Ucrânia podem ter o potencial de fazer o que aconteceu na Jugoslávia uma brincadeira de crianças. Desta vez, resta esperar que a União Europeia tenha aprendido com as lições do passado e mostre uma coesão em política externa que, como a História tem mostrado, em momentos-chave da política internacional, tem infelizmente escasseado.

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