08 Nov 2021, 11:30					De vez em quando, a realidade parece querer dar-nos um murro no estômago. Acordamos de repente para uma realidade que não esperávamos. É frequente, nessas ocasiões, fazermos um voto pio: nunca mais nos apanharão desprevenidos, e fazemos juras de procurar um remédio – talvez milagroso – para que tal venha a suceder. Mas tantas vezes nos desleixamos, e nos pomos a jeito para uma nova surpresa.
Em 2017, Portugal foi abalado por duas vagas de incêndios de proporções gigantescas. Morreu muita gente. Destruiu-se património em larga escala. Mobilizou-se a opinião pública. Decretaram-se dias de luto nacional. O choque emocional foi imenso, e com a bonança — que costuma seguir-se à tempestade, fomos regressando à “normalidade”.
As desigualdades entre as várias parcelas da nação crescem a olhos vistos
Este ano, o Instituto Nacional de Estatística revelou os dados preliminares do Censo à população. A imagem do país que somos assustou muita gente. Não é que a população residente está em queda? Mas ao mesmo tempo cresce significativamente na Área Metropolitana de Lisboa e também no Algarve, ao passo que o resto do território se vai paulatinamente despovoando? As desigualdades entre as várias parcelas da nação crescem a olhos vistos. Este retrato cruel é uma violenta bofetada na ideia de um desenvolvimento harmonioso do todo nacional, uma condenação sem piedade das palavras vãs com que imaginamos o nosso futuro colectivo.
Perguntará o leitor: o que é que tem em comum os incêndios de 2017 e o Censo de 2021? Creio que um elemento fundamental: uma perspectiva errada e bem arreigada de entender a gestão do território.
Regressemos aos fogos de 2017. Se bem que na época dos incêndios haja fogos de norte a sul do país, a verdade é que há uma região em especial onde eles atingem uma dimensão e tem um impacto significativamente maior do que nos restantes. No caso concreto, trata-se da região Centro de Portugal. Como é que esta região está equipada para fazer frente a um problema que, no seu seio, é qualitativamente superior ao das restantes regiões? Que políticas especialmente desenhadas para atacar a raiz do problema existem – e quem é por elas responsável?
A estrutura de governança regional andou desaparecida em combate
Pois bem, o que vimos em 2017 foi a concentração da resposta nas mãos do MAI, com sede em Lisboa, e um silêncio envergonhado do Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, também a partir do Terreiro do Paço. E vimos presidentes de câmara da região serem crucificados por desleixo em tarefas de limpeza de matas que não passam de pobres aspirinas para o mal que está instalado. A estrutura de governança regional andou desaparecida em combate…
Uma análise do Censo de 2021 mostra bem que há uma tendência nacional para a concentração populacional em dois pólos – AMLisboa e Algarve. No entanto, uma análise mais fina mostra que há vários exemplos de municípios – unidade de análise que é fácil de usar – onde se registaram políticas positivas de atracção de novos residentes. São concelhos onde o saldo natural (diferença entre nascimentos e óbitos) deveria ter levado a um decréscimo maior da população residente do que efectivamente se verificou na exacta medida em que tiveram capacidade de atrair novos moradores.
Uma análise do Censo de 2021 mostra bem que há uma tendência nacional para a concentração populacional em dois pólos – AMLisboa e Algarve
Outros mostram que em territórios contíguos a natalidade teve comportamentos um pouco diferentes – fruto de políticas activas. Estes exemplos mostram que há margem de manobra para políticas demográficas e de mobilidade – mas que a escala em que elas se têm vindo a produzir é demasiado fraca para ter impacto significativo sobre a tendência macro. Entre o poder central, que vive bem com a transfiguração do território, e o poder municipal, que não tem força para contrariar a tendência, não há espaço para uma autoridade democrática capaz de intervir no terreno.
Assim, o que me parece unir os dois murros que levamos é a constatação de que que a gestão do nosso território não dispõe dos instrumentos necessários para desenhar políticas adaptadas às circunstâncias das diversas regiões, que se caracterizam por apresentar características distintivas e por isso mesmo requererem respostas adaptadas às suas realidades.
A gestão do nosso território não dispõe dos instrumentos necessários para desenhar políticas adaptadas às circunstâncias das diversas regiões
A Constituição da República Portuguesa tem, desde 1976, uma provisão para tal fim: as regiões administrativas do continente, que teimam em não sair do papel. Mesmo quando, em 2018, a Assembleia da República encarregou uma comissão multipartidária de estudar a questão, a resposta às propostas elencadas pela equipa do Eng.º João Cravinho, que suscitavam um amplo apoio, foram metidas mais uma vez na gaveta. Vivem alegremente nos programas eleitorais de vários partidos. Será que vai suceder mais uma vez o mesmo?
A regionalização não será talvez a mezinha que cura todos os males – mas é uma janela de esperança que possamos vir a tratar o ricamente diverso território nacional como ele merece.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
																
																
																
																		
																		
																		
          
          
          
          
          
          
      
					
										
                  
                  
                
                  
                  
                
                  
                  
                  
                
                  
                  
                  
                
                  
                  
                  
                
                  
                  
                  
                
                  
                  
                  
                
                  
                  
                  
                
                  
                  
                  
                
                  
                  
                  
                
                  
                  
                  
                  
                  
                        
                        
                  
                
                  
                  
            
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