A linha que separa os lisboetas é, na verdade, uma faixa, verde e branca e chama-se ciclovia. A mais conhecida nasceu em junho do ano passado, na Avenida Almirante Reis (Arroios), cortando uma das vias de circulação automóvel, em cada sentido. Tratando-se esta avenida de uma das artérias da cidade com maior fluxo de circulação, rapidamente se instalou a discórdia entre ciclistas e automobilistas, e a mediatização deste troço acabou por tornar a ciclovia da Almirante Reis num símbolo do problema de mobilidade em Lisboa.
Por um lado, quem tenta circular de carro pela avenida depara-se diariamente com a via congestionada e tem cada vez menos opções para estacionar. Por outro, os ciclistas, que triplicaram desde a construção da ciclovia, não querem perder este troço central, pelo contrário, querem expandi-lo.
Durante a campanha eleitoral, Carlos Moedas, eleito presidente da Câmara Municipal de Lisboa, garantiu que a ciclovia da Almirante Reis era para acabar. Na tomada de posse, voltou a reforçar a necessidade de “redesenhar” a rede de ciclovias. Ontem (19/10), logo no primeiro dia do mandato, os ciclistas pedalaram, pela polémica avenida, até à Praça do Município, para se fazer ouvir.
Já caía a noite quando as centenas de ciclistas começaram a percorrer a Avenida Almirante Reis a caminho do edifício da Câmara. Nos cruzamentos por onde passavam, com proteção da polícia de trânsito, os carros, obrigados a esperar largos minutos, buzinavam e reclamavam contra o trânsito provocado pela manifestação.
Catarina Lopes, membro do movimento Ciclovia Almirante Reis, uma das 40 entidades que assinou a carta aberta em defesa da ciclovia e que convocou a manifestação, fala numa adesão de 600 a 700 pessoas. “Carlos Moedas disse que queria ouvir as pessoas, e nós estamos aqui porque queremos ser ouvidos. Queremos dizer-lhe que estas pessoas têm tanto direito ao espaço público como os automobilistas, e que merecem uma alternativa segura”, afirma a manifestante.
Para o movimento a favor da ciclovia, as vias cicláveis “pop-up”, como é o caso da Almirante Reis, têm vantagens – a implementação rápida e baixo custo – mas também algumas desvantagens e, neste caso, o problema é não estar ainda interligada ao resto da rede. “A ciclovia só vai do Martim Moniz à Alameda, não tem continuidade até ao Areeiro, e esse troço apesar de muito pequeno faz toda a diferença. O ideal seria uma reestruturação que melhore as condições para os ciclistas e peões”, explica Catarina Lopes ao EuroRegião.
Já Luís Castro, presidente do movimento Vizinhos de Arroios, está do lado oposto da discussão. “(A ciclovia) é para acabar, não faz sentido aqui”, declara. “A ‘ciclo-coisa’ como nós lhe chamamos, é tudo menos uma ciclovia porque, como disse Carlos Moedas, as ciclovias têm de obedecer a determinados critérios, incluindo ser segregada, e a ciclovia da Almirante Reis não é segregada”, explica.
Segundo o representante da associação de moradores, “a ideia de que só pode haver mobilidade suave se houver ciclovias é uma mentira” e, diz, a associação sugeriu “fazer da Almirante Reis uma via partilhada, em que o transito mais à direita é limitado à velocidade de 30 km/h e seria aí que os ciclistas poderiam circular. Isto permitia que tivéssemos as duas vias de trânsito em cada sentido”.
Mas, segundo o movimento de ciclistas, essa opção não é viável. “Há que notar que na via da direita, onde passa o elétrico, há carris que são muito perigosos para as bicicletas. Isso tem de ser tido em conta quando se ponderar a restruturação da ciclovia”, lembra Catarina Lopes. “Nesta e noutras avenidas, 60% do espaço é dedicado ao automóvel, em circulação ou estacionamento, e só sobra o restante para as mobilidades ativas (bicicletas e peões). É preciso redistribuir este espaço”, acrescenta.
Luís Castro esclarece que o movimento de moradores “não é contra as ciclovias”, mas que estas não devem causar mais constrangimentos no tráfego. “A Almirante Reis já estava numa situação limite porque era congestionada nas horas de ponta, fora disso, tinha muito fluxo, mas os carros circulavam. Agora, o trânsito é constante. Antigamente, o autocarro que sai do Martim Moniz e vai até Sacavém fazia o percurso em 40 minutos, agora demora uma hora e 45 minutos”, argumenta.
Mas Catarina Lopes tem dados diferentes: “Ao início, quando a ciclovia foi implementada, o congestionamento aumentou, houve mais dificuldades de circulação automóvel, mas que ao longo dos últimos meses esse congestionamento já se dissipou. O que é natural, não é um caso inédito. Quando há transformações físicas em avenidas com bastante circulação, há um período inicial em que piora, mas vai melhorando. A circulação já voltou ao normal e já não está diretamente relacionada com a ciclovia”.
Até na sustentabilidade da via ciclável parece não haver consenso entre as duas fações. O movimento a favor da ciclovia destaca a importância deste tipo de infraestruturas para o combate das alterações climáticas: “A maior parte das pessoas, não tendo uma infraestrutura segura e confortável, tem medo e não usa. É preciso redesenhar a cidade para acolher quem tem vontade de pedalar. É uma escolha que beneficia todos, mesmo quem não anda a pé ou de bicicleta porque emite menos emissões e que diminui a velocidade do trânsito, aumentando a segurança”. Já os Vizinhos de Arroios acusam a ciclovia de fazer precisamente o contrário. “O aumento do trânsito fez aumentar a poluição atmosférica e sonora, aumentaram o número de queixas de problemas respiratórios, e já não se consegue estar nas esplanadas por causa do calor dos carros e do barulho. Antes era muito diferente porque os carros circulavam, agora estão permanentemente aqui parados”, afirma Luís Castro.
O morador de Arroios conta ao EuroRegião que, à hora da manifestação, vai estar na tomada de posse da nova presidente da Junta, numa das freguesias que o PS perdeu para a coligação Novos Tempos. Apesar do movimento que representa ser apartidário, Luís Castro não tem dúvidas da influência da mobilidade nas últimas eleições autárquicas. “A arrogância da Câmara bem como a conivência da Junta de Freguesia com estas políticas foram determinantes na perda do partido socialista para a coligação Novos Tempos. Não acho, tenho a certeza”, exclama.
Mais tarde, já com a Praça do Município cheia, Catarina Lopes considera a forte adesão “uma mensagem clara de que os cidadãos querem cidades para pessoas”. “É um apelo à coragem política para transformar a cidade de maneira a acolher todas as mobilidades. Compreendemos o transtorno para as pessoas, sabemos que nem toda a gente vai ficar agradada com a redistribuição do espaço, e que há pessoas que vão precisar de mudar de hábitos, mas temos metas carbónicas para cumprir. Claro que vão haver dores de crescimento, mas não há outro caminho que não o da redução da utilização do automóvel e reduzir a utilização do carro passa por desmotiva-lo, e isso inclui reduzir as vias e o estacionamento”, argumenta.
Neste momento, a resolução do problema parece estar tão congestionada como as vias da cidade e, na impossibilidade de agradar a gregos e troianos, caberá ao novo executivo decidir o futuro da mobilidade em Lisboa.