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Investigador do CES-UC e IHC-UNL
17499 dias
"Hoje, 24 de Março de 2022, cumpre-se uma data histórica: o regime de liberdade que Portugal conquistou com o 25 de Abril de 1974 ultrapassa a duração dos regimes autoritários."
24 Mar 2022, 11:00

Hoje, dia 24 de Março de 2022, cumpre-se uma data histórica: o regime de liberdade que Portugal conquistou com a Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974 ultrapassa a duração dos regimes autoritários (Ditadura Militar de 1926 a 1928, Ditadura Nacional de 1928 a 1944 e Estado Novo de 1933 a 1974) que se seguiram ao fim da Primeira República.

A longa noite das ditaduras deu origem a este tempo de democracia em que a esmagadora maioria do povo português se revê. Foram 17498 penosos dias em que as alegrias individuais que não deixaram de ter lugar foram enquadradas por um regime político opressor. “Orgulhosamente sós” caminhámos para a cauda da Europa e deixamos que os progressos que bem perto de nós eram conseguidos nos passassem ao lado, reprimindo quem ousasse tenta levantar a voz – e foram tantos… O retrato de Portugal em 1974 envergonha só de o recordar.

Foram 17498 penosos dias em que as alegrias individuais que não deixaram de ter lugar foram enquadradas por um regime político opressor

Com a aurora da liberdade irromperam na cena pública os mais variados projectos. Era natural que sonhos longamente contidos, com limitadíssima possibilidade de serem apresentados e discutidos fora de pequenos círculos essencialmente clandestinos, saltassem com estrondo para a praça pública.

Durante ano e meio, a Revolução pôs em confronto concepções de democracia e de organização política bem diversos. Para uns, era chegado com trinta anos de atraso o imediato pós-guerra, época em que os fascismos foram derrotados em quase toda a Europa (tendo Portugal e a Espanha sido das excepções) e substituídos por regimes de “democracia liberal” que podemos considerar de baixa intensidade. Para outros, a experiência da Europa Oriental, nesse mesmo pós-guerra, com a instalação de regimes “socialistas” que pretendiam superar as limitações da “democracia burguesa” através da instalação de “democracias populares” era a via a seguir. Para outros ainda, experiencias mais recentes, quer oriundas da Europa ocidental – como o Maio de 1968 em França – onde despontavam novas forças sociais (como o movimento estudantil), quer de países do chamado Terceiro Mundo que procuravam fugir ao espartilho da Guerra Fria e desbravar modelos originais – estivessem eles na China Popular, no “socialismo africano” ou experiências na América Latina (com o perfume romântico de um Che Guevara) – forneciam uma chave que orientava as opções a tomar.

A longa noite das ditaduras deu origem a este tempo de democracia em que a esmagadora maioria do povo português se revê

A sede de liberdade matava-se com diversas águas. O confronto foi sério e uma das suas características foi a efectiva mobilização da população portuguesa que se embrenhou numa luta politica sem precedentes. Faltou nesses meses um enquadramento institucional que balizasse os confrontos e permitisse a emergência de posições maioritárias com tradução nas politicas públicas.

A aprovação da Constituição, em 2 de Abril de 1976, marca o inicio formal da Segunda República, e com ela o fim do período de indefinição institucional. Esta constituição, que se mantém em vigor – tendo já ultrapassado o período de vigência da constituição salazarista de 1933 – representa uma síntese das posições que animaram a cena nacional nos dois anos anteriores.

Se em termos do quadro institucional ela consagra um regime de “democracia liberal” baseado na prevalência do sufrágio universal, livre e secreto como base da legitimação dos órgãos de um poder constituído por elementos independentes que entre si exercem “checks and balances” e se conformam a um estado de direito, a Constituição de 1976 – apesar das revisões que foi sofrendo que foram atenuando alguns dos seus preceitos mais ousados – mantém, no seu articulado, elementos provindos de outras matrizes ideológicas, como a consagração das comissões de trabalhadores e de moradores, a co-existência de sectores de propriedade ou os fundamentos de uma Reforma Agrária. Não compreenderíamos a sua essência se não reconhecêssemos nela a confluência de várias correntes de pensamento que animaram o período mais festivo da Revolução.

Foi com base nessa convergência de posições que pôde afirmar-se a construção de um Estado Social que hoje vigora, e que em muito diminuta medida encontrou alicerces no regime autoritário. As três vertentes mais distintas do nosso Estado Social encontram-se nos campos da educação, da saúde e da protecção social. Todos eles são palco de divergências quanto ao melhor modo de os tornar efectivos – havendo até quem proponha substitui-los…- como é próprio de uma democracia madura. Mas sobre eles recai um alargado consenso de que constituem conquistas populares da Revolução dos Cravos.

Existe ainda uma outra transformação estrutural no nosso modo de vida politica: a adesão do país à então CEE, hoje União Europeia

Existe ainda uma outra transformação estrutural no nosso modo de vida politica: a adesão do país à então CEE, hoje União Europeia. Trata-se de uma decisão que não foi oportunamente sancionada por um voto directo (como sucedeu noutros países que igualmente estiveram envolvidos em processos semelhantes), mas cuja legitimidade parece adquirida através das várias formas de legitimação indirecta a que tem sido sujeita. Com esta adesão, Portugal prescindiu de uma soberania absoluta e aceitou partilhá-la com os demais países. No entanto, e no fim de um longo processo negocial, Portugal pôde manter a sua constituição com a matriz original. Por outro lado, Portugal tem contribuído para que se desvanecesse (em parte) a ideia de que se tratava de um “Clube de ricos”, e apostado em defender politicas de solidariedade internacional (das quais aliás tem sido beneficiário liquido). Ou seja: a matriz politica do Portugal democrático tem servido para acentuar iniciativas que se pautam pelo mesmo diapasão.

A Carta Constitucional da Monarquia, outorgada por Dom Pedro em 1826, manteve-se em vigor – com pequenos hiatos – entre essa data e 1910. Falta ainda muito tempo para que a Constituição de 1976 lhe chegue ao pé. Mas as sólidas bases democráticas, que esta última instituiu, permitem encarar o futuro com optimismo. É assim que julgo mais adequado celebrar os 17499 dias em liberdade, esperando que não tenham fim

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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