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Investigador do CES-UC e IHC-UNL
O berbicacho
“Quem antevia que Marcelo desejava contribuir para desfazer o que ainda sobrava da “geringonça” dirá que acertou em cheio”.
10 Mar 2022, 12:00

Apesar de ter já decorrido quase um mês e meio desde o encerramento das urnas a 30 de Janeiro, ainda não são conhecidos os resultados finais das eleições legislativas. Tal deve-se ao incompreensível erro na contagem de votos nas mesas dos emigrantes – um problema que estava em cima da mesa pelo menos desde as eleições de 2019 e que o super-ministro, Eduardo Cabrita, em mais de dois anos, conseguiu…não resolver.

Por detrás deste drama está a cultura política portuguesa tão pressurosa em fazer sempre mais uma lei, sem verdadeiramente se preocupar com a compatibilização entre elas. Como dizia há anos um político italiano, “é impossível governar um país com 69 mil leis diferentes em vigor”. Tratou-se de uma nódoa que marca indelevelmente este processo eleitoral.

Os resultados já conhecidos permitem, no entanto, tirar algumas conclusões, agora que a poeira da noite eleitoral já teve tempo para assentar.

Primeira conclusão: o presidente Marcelo teve (alguma) razão em dissolver o parlamento. Tal como sucedeu em situações semelhantes no passado, o novo parlamento tem uma configuração distinta da anterior. Porém, ao contrário do que se passou em 1979, 1982, 1989, 2002, 2004 e 2011, a maioria parlamentar não mudou de família política. Tal como em 1989, o primeiro-ministro que chefiava um executivo minoritário viu-se agora à frente de uma maioria absoluta que lhe permite outro tipo de relações com o parlamento.

Quem achava que o propósito seria aproximar os partidos ao centro, assumindo um elevado protagonismo na negociação das condições de estabilidade que sustentassem um governo sem maioria – o tal “berbicacho” de que tantas vezes se falou – deverá hoje ter duvidas

Quem antevia que Marcelo desejava contribuir para desfazer o que ainda sobrava da “geringonça” dirá que acertou em cheio. Quem achava que o propósito seria aproximar os partidos ao centro, assumindo um elevado protagonismo na negociação das condições de estabilidade que sustentassem um governo sem maioria – o tal “berbicacho” de que tantas vezes se falou – deverá hoje ter duvidas. E quem achava que Marcelo almejava o surgimento de uma alternativa de direita capaz de se impor, deve constatar que essa aposta não teve pernas para andar.

Na verdade, se é certo que o que restava da “geringonça” teve um aparatoso funeral, as esquerdas continuam a dispor de uma ampla maioria no hemiciclo de São Bento: 128 deputados (fora os que possam vir da eleição no circulo eleitoral da Europa) em 230. Por outro lado, as direitas assistiram a um processo de fragmentação, com a subida significativa do Chega e da Iniciativa Liberal (IL) perante a estagnação do PSD e o desaparecimento do CDS. O processo de fragmentação à direita não augura nada de bom para a sua capacidade de gerar uma solução governativa nos anos que se aproximam.

O processo de fragmentação à direita não augura nada de bom para a sua capacidade de gerar uma solução governativa nos anos que se aproximam

Uma das principais razões que explicam o sucesso das esquerdas em três eleições sucessivas é a memória pesada dos anos de governação de Passos Coelho. Por muito que Passos Coelho seja apresentado como uma espécie de D. Sebastião que há-de vir resgatar a sua família política, a sua sombra pesa sobre todos aqueles – e são milhões – que sofreram os efeitos do “ir para além da troika”. Terá por isso sido imprudente Rui Rio avançar com propostas – eventualmente pressionado pela agenda da IL – de “compatibilizar” o reforço do sector privado na saúde com a manutenção do actual SNS, ou de abrir a porta a fundos privados na Segurança Social, que facilmente foram encostadas a um propósito de andar para trás num momento em que os serviços públicos eram vistos – e bem – como o esteio da resposta à crise pandémica. Não ganhou votos à direita, perdeu-os ao centro

 O exemplo de como as coisas se podem compatibilizar vindo dos Açores só piorou a situação, deixando pairar a ideia de que não haveria mesmo nenhuma linha vermelha entre PSD e Chega

O mesmo se diga em relação à atitude perante as propostas da extrema-direita do Chega. Muitos são os altos quadros do PSD – de Miguel Poiares Maduro a António Capucho – que não compreendem a razão pela qual Rui Rio se esforçou por mostrar que essas propostas, “afinal não são tão radicais e inaceitáveis como muita gente diz”. O exemplo de como as coisas se podem compatibilizar vindo dos Açores só piorou a situação, deixando pairar a ideia de que não haveria mesmo nenhuma linha vermelha entre PSD e Chega. Tratou-se de um exercício de resultado negativo que, mais uma vez, nada acrescentou à direita e afastou o centro.

Torna-se assim claro que a direita tem entre mãos um dilema estratégico: como recuperar o centro que lhe proporcione a capacidade para vir a apresentar-se como alternativa de poder?

Na verdade, enquanto limitar ao seu espaço mais fiel o âmbito das suas discussões, dificilmente sairá da sua zona de conforto para pescar em águas que lhe falecem.

Ora, parece que o âmago da questão está em saber definir uma política em relação à ponta mais extrema do espectro da direita que dê conforto a quem faz da democracia e dos direitos humanos – elementos sob forte contestação nesse nicho político – a pedra de toque do seu posicionamento. Ambiguidades nessa matéria deitam tudo a perder.

Um aspecto pouco sublinhado destas eleições é que elas subverteram o calendário político português a médio prazo

Um aspecto pouco sublinhado destas eleições é que elas subverteram o calendário político português a médio prazo. Assim, ao invés de haver eleições legislativas (em 2024) antecedendo as presidenciais de 2026, tudo indica que serão estas a ter prioridade. O que pode significar que as próximas eleições presidenciais se comecem a preparar a curto prazo como forma suprapartidária de definir uma estratégia capaz de gerar uma plataforma interpartidária.

Dito de outra forma: não seria de admirar que aparecesse cedo um (ou vários) proto-candidato apelando a que a afirmação partidária que impediu, por exemplo, uma mais ampla coligação para a Câmara de Lisboa, venha a ser reservada para eleições legislativas e se aproveite o ensejo das presidenciais para afirmar propósitos comuns – e separando claramente as águas.

Ocorre-me pensar que as esquerdas tiveram em 1985 um problema semelhante. Nessa altura, a separação das águas fazia-se em torno da questão da democracia liberal e da pertença ao espaço europeu (que foi protagonizado por Mário Soares), contestado pelos herdeiros do “poder revolucionário instituído” (PRD), pelos defensores do socialismo basista (Maria de Lurdes Pintasilgo) e pelo sector comunista fiel aos ditames da URSS. A vitória de Soares foi determinante para a emergência da esquerda democrática como polo hegemónico, posição que ainda hoje mantém.

não seria de admirar que aparecesse cedo um (ou vários) proto-candidato apelando a que a afirmação partidária que impediu, por exemplo, uma mais ampla coligação para a Câmara de Lisboa, venha a ser reservada para eleições legislativas e se aproveite o ensejo das presidenciais para afirmar propósitos comuns – e separando claramente as águas

Marcelo Rebelo de Sousa é um político de direita que não esconde as suas origens e nem sempre oculta bem os seus propósitos. É natural que gostasse de ver a sua família política reemergir como uma força capaz de lutar pela maioria em eleições legislativas. No entanto, o seu posicionamento centrista e a sua opção por manter boas relações institucionais (e mesmo politicas…) com um primeiro-ministro socialista não o colocam em boa posição para assumir as rédeas do processo de recomposição da direita. Provavelmente, terá de se remeter a um plano secundário perante a emergência de uma outra figura que possa desempenhar tal função com maior determinação.

Será este o berbicacho que não anteviu?

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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