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Investigador do CES-UC e IHC-UNL
A Polónia e nós
“A construção da Europa unida, como dizia Jean Monnet, faz-se pelo método dos pequenos passos – e da negociação, não da imposição”.
06 Dez 2021, 00:00

De há uns tempos a esta parte, a Polónia tem andado nas bocas do mundo a propósito do conflito que opõe as autoridades de Varsóvia à maioria dos países da União Europeia. No epicentro da questão está a deriva autoritária que tem vindo, paulatinamente, a tomar conta das atitudes dos governantes polacos (em sintonia com os seus congéneres húngaros, e com simpatias crescentes entre outras nações como a Eslovénia), e que, argumenta-se em Bruxelas, põe em causa fundamentos do tecido institucional da União.

Não tenho nenhuma razão para duvidar da validade de tal argumentação, no plano abstracto. Na verdade, peças importantes da recente legislação polaca, nomeadamente referente à composição do poder judicial cuja independência em relação ao poder político, tem vindo a ser aprovadas, com um impacto claramente negativo no equilíbrio democrático e na protecção dos cidadãos. Penso, assim, que há razão por parte da UE em levantar a questão de fundo. No entanto, gostaria de chamar a atenção para um outro aspecto:

As autoridades de Varsóvia argumentam que toda a legislação que suscita polémica tem enquadramento na sua constituição política, e que esta, por sua vez, tem prevalência sobre directivas e outros instrumentos comunitários

As autoridades de Varsóvia argumentam que toda a legislação que suscita polémica tem enquadramento na sua constituição política, e que esta, por sua vez, tem prevalência sobre directivas e outros instrumentos comunitários. Trata-se, a meu ver, de um argumento sério – que hoje toca à Polónia e amanhã nos pode tocar a nós (se é que não se passa já coisa semelhante em termos do nosso relacionamento com a União – muito embora nós não tenhamos conflituado com princípios democráticos).

A adesão de qualquer país à União Europeia é precedida de um longo processo de negociação, e só é dado como terminado quando se verifica que não existe, no edifício legal e institucional do país candidato, nenhuma contradição com o que vulgarmente se denomina o acquis communautaire, ou seja, as regras que vigoram no espaço comum.

Portugal, por exemplo, iniciou o processo de adesão em 1976 (I Governo Constitucional presidido por Mário Soares) e só concluiu as negociações em Junho de 1985, entrando na, então, CEE em 1 de Janeiro de 1986.
Foi dito, nessa ocasião, que passaríamos a beneficiar das vantagens de um amplo espaço político-económico comum, ao mesmo tempo que manteríamos a nossa própria voz (e as nossas instituições próprias plenamente em vigor).

A adesão de qualquer país à União Europeia é precedida de um longo processo de negociação, e só é dado como terminado quando se verifica que não existe, no edifício legal e institucional do país candidato, nenhuma contradição com o que vulgarmente se denomina o acquis communautaire, ou seja, as regras que vigoram no espaço comum

Entre 1986 e 2021, várias foram já as vezes em que concordámos – mas sempre dispondo de voz própria – com novas medidas comunitárias, cuja transcrição para o corpus legal português temos vindo a assumir. Já fomos ao ponto de fazer revisões constitucionais para incorporar novos entendimentos, após processos negociais. O que nunca sucedeu – se bem vejo o problema – foi depararmos com uma contradição entre a constituição portuguesa e preceitos oriundos da União. Ou seja: nunca, explicitamente, foi dito que o que a constituição permite é proibido por regras europeias.

Entre 2001 e 2004, foi elaborado um projecto de “constituição europeia”, aprovado pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu, que acabou sendo posto em referendo em dois países – França e Países Baixos – e que o rejeitaram. Morreu, assim, o sonho (de alguns) de ter um documento que se sobrepusesse de forma explicita às constituições nacionais. Mas nem todos disseram, “Paz à sua alma!”.

A minha posição não é contrária a que se formalizem mecanismos de reforço da União. Pelo contrário: a sua formalização exige negociação, e atender às várias vozes que formam o caleidoscópio europeu. O que eu vejo na UE dos nossos dias, porém, é um afunilamento dos direitos democráticos

Várias tem sido as iniciativas de tentar construir um edifício europeu por cima das constituições nacionais. E, por vezes, nem é preciso haver uma negociação que respeite completamente os termos de referência: basta estabelecer um fait acompli. Qual é o tratado, ou o instrumento formal, que sustenta o Eurogrupo? Se não erro, o Eurogrupo funciona na estrita medida em que os países da zona euro se submetem, voluntariamente, aos seus ditames – mas pode-se ser membro da UE sem participar no euro e nos seus derivados.

A minha posição não é contrária a que se formalizem mecanismos de reforço da União. Pelo contrário: a sua formalização exige negociação, e atender às várias vozes que formam o caleidoscópio europeu. O que eu vejo na UE dos nossos dias, porém, é um afunilamento dos direitos democráticos.

Mesmo quando a realidade dura que vivemos mostrou o carácter ideológico e dogmático do Tratado Orçamental – que corresponde a uma opção política de direita e limita severamente o âmbito das políticas constitucionalmente possíveis – assistimos à produção de eufemismos

O princípio central da democracia exige que seja dada igual oportunidade a diferentes opções políticas. Ora, tal não significa uma rotação de partidos no governo que sejam obrigados a praticar a mesma política! E, há tantas áreas em que a nossa constituição nos permite encarar políticas alternativas que nos são apresentadas como “contrariando Bruxelas”! Bem sei: há quem proponha “leituras inteligentes” de determinados tratados – mas isso geralmente não passa de arremedos com pouco impacto, que deixam de pé o edifício monolítico. Mesmo quando a realidade dura que vivemos mostrou o carácter ideológico e dogmático do Tratado Orçamental – que corresponde a uma opção política de direita e limita severamente o âmbito das políticas constitucionalmente possíveis – assistimos à produção de eufemismos.

Pode a Polónia ter a pior das intenções – e creio que tem – nas suas iniciativas tendencialmente autoritárias e capazes de ferir o estado de direito. Mas não há razão para que se diga que a sua constituição – a que não foi levantado nenhum óbice no momento da adesão nem sugerido que fosse alterada – deve ser subordinada a algo que não foi negociado.

Hoje é a Polónia, amanhã seremos nós a sofrer um diktat europeu. A construção da Europa unida, como dizia Jean Monnet, faz-se pelo método dos pequenos passos – e da negociação, não da imposição.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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