ALQUEVA: O COLETE SALVA-VIDAS DURANTE A SECA
O Alqueva comemora o 20º aniversário no pior ano de seca, desde 2005. O objetivo era criar uma reserva estratégica de água, que se está a tornar cada vez mais importante.
Beatriz Abreu Ferreira / Manuel Ribeiro
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17 de Fevereiro 2022, 10:04
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Foi precisamente há 20 anos, em fevereiro de 2002, que fecharam as comportas da barragem do Alqueva, entre Évora e Beja. O projeto já era antigo e as expectativas eram grandes, mas apesar de alguns planos terem ficado por cumprir, o principal objetivo foi concretizado: o maior lago artificial da Europa tornou-se numa reserva hídrica estratégica no Alentejo.

Quando as obras arrancaram, ainda nos anos 1990, “quase não se falava das alterações climáticas”, mas “do ponto de vista hidrológico, o Alentejo é uma região com pouca água, há muitos séculos, e o problema da falta de água no sul de Portugal já era reconhecido,” conta Rui Salgado, professor na Universidade de Évora e especialista em Ciências Geofísica e Física da Atmosfera, e um dos intervenientes do estudo de impacto ambiental de Alqueva realizado em 1994/95.

“[O Alqueva] está num ponto único no Guadiana, onde fazendo uma barragem, com uma parede relativamente pequena, fez, como já se sabia que ia fazer, um lago enorme. Teve logo desde o princípio vários objetivos, mas o primeiro do ponto de vista hídrico, era criar uma reserva estratégica de água, e isso sem dúvida foi conseguido,” afirma.

Num ano em que perto de metade do território nacional, incluindo o Baixo Alentejo, se encontra em seca extrema ou severa, o Alqueva continua a ter cerca de 77% das suas reservas de água.

“O Alqueva continua a ter bastante água, ao contrário de todas as pequenas barragens e albufeiras aqui do sul, e mesmo algumas no centro e norte do país. O que quer dizer que mesmo que este ano não chova mais, Alqueva vai manter a água, vai permitir o abastecimento humano, vai permitir na mesma a irrigação e a agricultura, e vai poder ser usado para encher um conjunto de pequenas albufeiras aqui da região. Esse primeiro objetivo [de criação de uma reserva hídrica] foi manifestamente conseguido e tem uma enorme importância para a região,” destaca o académico, acrescentando que “havia na altura [da elaboração do projeto] quem defendesse não fazer a barragem, ou fazer numa cota mais baixa, e isso não teria criado esta reserva estratégica que o Alqueva criou, que é de uma enorme importância e tem muitas potencialidades para o futuro”.

Futuro esse que se prevê quente e bastante seco. Ainda que a barragem tenha criado um clima mais ameno, isso aconteceu “exclusivamente numa zona muito próxima da albufeira”, com “um efeito que pode ser de alguns graus”, mas se sente apenas “em zonas irrigadas, e nas terras próximas, num raio de poucos quilómetros”. Por exemplo, “numa vila como Mourão, podemos ter efeitos na ordem de um ou dois graus,” explica o especialista.

Todas as previsões apontam para que o sul de Portugal seja uma das regiões “mais afetadas pela redução de precipitação”, algo que já se está a observar este ano. Nesse sentido, o “Alqueva vai se tornar ainda mais importante” e “é necessário ter cuidados acrescidos do ponto de vista da gestão da água”, alerta Rui Salgado.

“A água tem de ser gerida de forma mais criteriosa do que está a ser, na minha opinião. O que toda a gente pode constatar é que têm aumentado bastante os perímetros de rega, especificamente para a monocultura do olival e amendoal. Eu quero crer que essa utilização não é mais apropriada para uma região como a nossa. Não que seja completamente contra a utilização de água para estes fins, agora a utilização de grande parte dos recursos para esse fim não me parece o melhor,” defende.

Num ano em que perto de metade do território nacional, incluindo o Baixo Alentejo, se encontra em seca extrema ou severa, o Alqueva continua a ter cerca de 77% das suas reservas de água.

Segundo o mesmo, o ideal seria optar por culturas adaptáveis e sazonais porque “num ano de seca pode não se poder fazer hortas, e faz-se só no ano seguinte”. Pelo contrário, “um olival não acaba de um dia para o outro e vai precisar de água todos os anos”. “Quando estamos a projetar os usos que vamos dar à água, temos de ter em conta que a tendência vai ser a de haver cada vez menos disponibilidade de água. Por isso, temos de escolher culturas sazonais que possam ser interrompidas”, argumenta.

A implementação da agricultura intensiva e superintensiva, particularmente através das culturas do olival e amendoal, também mereceu as críticas de Rui Salgado, “enquanto cidadão” alentejano. Na opinião do professor da Universidade de Évora, “a expectativa que as populações tinham no Alentejo era que Alqueva servisse muito mais formas de agricultura”.

Esta “não é a agricultura que interessa às pessoas que aqui vivem” porque “a monocultura gera poucos empregos, pouco estáveis, e gera trabalho com reduzidos direitos e à beira da escravatura”, não é útil para resolver o problema da baixa demografia, e “há o risco de os solos rapidamente perderem as suas características, aumentar a erosão, e ficarem muito mais pobres. Esta sobre-exploração pode durar uma ou duas décadas, mas a partir daí pode deixar os solos completamente degradados”, diz.

Por último, o especialista em Física da Atmosfera aponta a utilização da barragem para a produção de energia como outra das estratégias a repensar. “A utilização, num ano destes, da água das albufeiras para gerar energia é bastante precipitada porque esta água vai fazer falta para outros usos, para os quais não existem alternativas, enquanto para a produção de energia existem alternativas,” avisa.

O local onde há mais de duas décadas os alentejanos, expectantes com a criação de uma barragem, escreviam: “Construam, porra!”, tornou-se o colete de salva-vidas de uma região em seca extrema. O pior pode ainda estar para vir, tornando-se cada vez mais importante estimar o enorme lado do Guadiana.

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