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Investigador do CES-UC e IHC-UNL
Regionalização: que referendo?
Parecem estar criadas as condições para que o processo, que vem do tempo em que a Assembleia Constituinte introduziu o tema na Constituição da República (CRP), chegue finalmente ao seu termo.
07 Abr 2022, 16:00

No programa entregue na Assembleia da República, o XXIII Governo Constitucional inscreve a intenção de avançar no processo de Regionalização do país, propondo-se levar a efeito um referendo no ano de 2024. Não se trata de uma surpresa, nem de algo que não tenha já sido mais do que uma vez anunciado.

Desta feita, porém, a intenção encontra-se associada a um calendário. Mais do que isso: o Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, a quem compete a convocação de qualquer referendo de âmbito nacional, e que ao longo da sua longa carreira política foi um adversário desta ideia tendo deixado as suas impressões digitais no actual articulado constitucional, admitiu num discurso perante o Congresso da Associação Nacional de Municípios, que estaria disposto a dar luz verde ao desenrolar do processo.

em certo sentido, assistimos a um caso de “inconstitucionalidade por omissão”, uma vez que os preceitos constitucionais foram até ao momento letra morta – e não foram sequer alterados perante a reprovação desta reforma por ocasião do referendo de 1998

Parecem, assim, estar criadas condições para que chegue finalmente ao seu termo um processo que, em boa verdade, vem já do momento em que a Assembleia Constituinte introduziu o tema na Constituição da República Portuguesa (CRP). É mesmo possível argumentar que, em certo sentido, assistimos a um caso de “inconstitucionalidade por omissão”, uma vez que os preceitos constitucionais foram até ao momento letra morta – e não foram sequer alterados perante a reprovação desta reforma por ocasião do referendo de 1998.

A CRP de 1976 dedicou o seu Título VIII ao Poder Local. Logo no Capítulo I (Princípio Gerais) contém o Artigo 238 que reza o seguinte:

1. No continente, as autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas.

Se as freguesias e municípios, independentemente do território que ocupam, das atribuições dos seus órgãos e das modalidades da sua eleição, ou dos seus recursos de que dispõem, existiam já antes da aprovação da CRP, as regiões administrativas careciam de ser instituídas quase ex-novo (se bem que houvesse em Portugal exemplos de divisões administrativas supra-municipais e algum trabalho no desenho das regiões administrativas). É nesse sentido que se deve interpretar o Artigo 256º (Instituição das Regiões), o qual determina o seguinte:

1. As regiões serão instituídas simultaneamente, podendo o estatuto regional estabelecer diferenciações quanto ao regime aplicável a cada uma. (…)

3. A instituição concreta de cada região dependerá do voto favorável da maioria das assembleias municipais que representem a maior parte da população da área regional.

A instituição das regiões administrativas ficava assim dependente de uma votação que teria de obedecer a uma dupla maioria: maioria das assembleias municipais da região e maioria da população representada pelas assembleias municipais.

Coube ao XIII Governo Constitucional desenvolver esforços para levar a cabo a adiada reforma. Porém, antes de dar o passo decisivo que consistiria em levar a votos a lei-quadro na Assembleia da República, António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa (líderes do PS e do PSD ou primeiro-ministro e líder da oposição) promoveram uma revisão constitucional que teve impacto directo no processo.

Assim, a instituição das regiões passou a depender de novas condições de acordo com o novo Artigo 256º (Instituição em concreto):

1. A instituição em concreto das regiões administrativas, com aprovação da lei de instituição de cada uma delas, depende da lei prevista no artigo anterior e do voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores que se tenham pronunciado em consulta direta, de alcance nacional e relativa a cada área regional.

2. Quando a maioria dos cidadãos eleitores participantes não se pronunciar favoravelmente em relação a pergunta de alcance nacional sobre a instituição em concreto das regiões administrativas, as respostas a perguntas que tenham tido lugar relativas a cada região criada na lei não produzirão efeitos.

3. As consultas aos cidadãos eleitores previstas nos números anteriores terão lugar nas condições e nos termos estabelecidos em lei orgânica, por decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembleia da República, aplicando-se, com as devidas adaptações, o regime decorrente do artigo 115.º.

Foi nos termos deste articulado que em Novembro de 1998 se realizou um referendo convocado pelo presidente Jorge Sampaio, do qual resultou a reprovação da proposta concreta que estava em discussão. Este articulado remete para o Artigo 115º (Referendo), o qual estipula que:

11. O referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento.

Ora, nenhum dos 3 referendos com âmbito nacional realizados em Portugal (o da Regionalização e os 2 sobre a Interrupção Voluntária de Gravidez) mobilizou mais de metade dos eleitores inscritos, e deles não resultou portanto qualquer decisão vinculativa. Porém – e muito bem! – foi entendimento generalizado que o sentido expresso pelos cidadãos deveria ser politicamente respeitado. Assim deverá suceder em futuras oportunidades. É mesmo isso que se depreende do Artigo 256º numero 1 que menciona a “maioria dos cidadãos eleitores que se tenham pronunciado em consulta directa”, abstendo-se de qualificar de outro modo essa mesma maioria.

A realização de 2 referendos sobre um mesmo tema (a IVG) sugere que não existe uma protecção definitiva do resultado de uma consulta referendaria. O que a CRP (Artigo 115º) indica é que:

10. As propostas de referendo recusadas pelo Presidente da República ou objeto de resposta negativa do eleitorado não podem ser renovadas na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da Assembleia da República, ou até à demissão do Governo.

Não colhe, portanto, o argumento daqueles que pretendem que o resultado de 1998 arrumara definitivamente a questão, tanto mais que tudo indica que a proposta que vier a ser apresentada em breve difere substancialmente da que foi recusada há quase um quarto de século.

Continua…

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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